domingo, 22 de novembro de 2009

A Máscara


Esta manhã não conseguia sair da cama. Foi como se uma força invisível me puxasse para debaixo dos lençóis e me dissesse que este dia-a-dia alucinante não adianta de nada e que portanto, melhor seria ficar na cama. Tentei lutar contra esta falta de ânimo que me esmaga, arranjei coragem e forças não sei onde, para me agarrar a ideias positivas, e levei o meu dia de trabalho para a frente sem pestanejar.
O Francisco mandou-me um e-mail a perguntar como eu estava, porque me tinha visto chegar com uma cara péssima. Respondi-lhe que andava com excesso de trabalho e preocupações, e que tinha dormido mal, mas que não era nada de mais. Ele perguntou – me se era mesmo só isso, e eu confirmei que sim. É um querido o Francisco, às vezes até parece que se preocupa comigo a sério, mesmo sem termos grande nível de intimidade. De vez em quando vamos beber café lá fora, eu, ele e a Matilde que é uma colega dos Recursos Humanos que eu gosto muito, e falamos sobre montes de coisas, menos do trabalho aqui no jornal. O Francisco é um fixe e tem o dom de me fazer rir, mesmo quando estou triste. Está sempre a contar piadas e a gracejar sobre tudo, tem um sentido de humor impressionante e contagiante. A Matilde também é uma querida, e quando estou mais em baixo, ligo-lhes para irmos beber café, e falamos de tudo e de nada ao mesmo tempo. De tudo, porque falamos de tudo mesmo, como actualidade, coisas de família, amigos, etc. E de nada, porque nem eu nem eles sabemos, qual é o nosso verdadeiro e real estado de espírito.
É triste, mas hoje em dia, noventa e nove por cento das pessoas usa uma máscara tão impenetrável, que ninguém consegue saber genuinamente, o que é que os outros estão a pensar ou a sentir, se estão contentes, ou tristes. Porque é que as pessoas fazem isto? É para se protegerem? Para não darem parte de fracas? Mas porquê, se toda a gente já sabe o que é chorar e sofrer, seja por perder alguém que se ama, seja porque a vida não nos corre bem, seja por solidão? Cada um de nós que se esconde diariamente por trás dessa máscara, já experimentou esse tipo de sentimentos. Então, porque é que os continuamos a esconder com tanto pudor como se tratasse de uma nudez obscena em público? Não entendo, sinceramente, não entendo, e muito menos porque também eu alinho neste teatro, e todos os dias visto a minha máscara para ir trabalhar, como se fosse mais um casaco ou um par de brincos. Mas enquanto esses são visíveis e se eu os tirar nota-se, a máscara é totalmente invisível, e ninguém sabe se eu a estou a usar ou não. Por isso, é tão difícil hoje em dia confiar nas pessoas, porque nunca sabemos se elas estão a ser totalmente verdadeiras ou se afinal, têm a máscara posta.
Se não existissem estas máscaras, o Mundo seria bem mais fácil e eu não teria que pôr litros de corrector de olheiras para conseguir ir trabalhar, sem pensarem que eu sou uma criatura tirada do Aliens, e quando o Francisco me perguntasse se eu estava triste, eu não iria vestir a máscara, e iria responder-lhe simplesmente que estou muito triste e infeliz, porque discuti com o Miguel e ele saiu de casa, porque tomei três Xanax, e dormi no chão da cozinha envolta em lágrimas, ao frio e abandonada .
Aí, ele também iria tirar a sua máscara e contar-me que também anda muito triste porque a mãe dele tem cancro, e está no hospital a fazer tratamentos, e os médicos já não têm esperança, mas só ele é que sabe, nem o pai dele suspeita. E assim, ele já poderia tirar a máscara em frente ao pai e contar-lhe que a mãe está a morrer, e se calhar só tem mais uns dias de vida. E o pai ia chorar de certeza, agarrar-se a ele e dar murros nas paredes, mas ia ajudar a mulher, sabendo de antemão que ela não vai viver muito mais. E que adianta esta mentira, se ele vai acabar por sofrer à mesma quando a mãe morrer?
A Matilde também tiraria a sua máscara e contaria que o marido a traiu com uma brasileira que trabalha ali nos frangos de Moscavide e agora se vê a braços com um T3 em Telheiras para pagar e dois filhos de cinco e oito anos de idade, e despesas que não acabam mais. E só mesmo por isso é que ela não se separa do desgraçado. Por isso e por o amar acima de tudo, mesmo que ele seja um traste da pior espécie. E aí estaríamos os três e toda a gente, nus como viemos ao Mundo, mas poderíamo-nos ajudar mutuamente, sabendo das desgraças da vida de cada um.
Eu aconselharia a Matilde a vender a casa e a ir morar com os pais, o Francisco a contar ao pai que a mãe tem cancro, e dar-lhe ia força para enfrentar este pesadelo que ele está a viver. A Matilde dir-me-ia para tentar compor as coisas com o Miguel, e o Francisco certamente me passaria a mão pela cabeça e me diria que ele não era homem para mim, e que eu merecia muito melhor.
Agora assim…Assim, não podemos fazer nada senão fingir que temos vidas perfeitas e fingir que acreditamos que os outros também as têm.
Porque todos sabemos que todos sofremos, temos problemas, chatices, discussões, todos choramos por amor, por incompreensão, fúria e raiva às vezes. Isso não é nenhum crime de pena capital, não é nenhum sinal de fraqueza, muito pelo contrário. Então se assim o é, para que é que andamos aqui todos a representar felizes e contentes, a vida que gostaríamos de ter? A vida não é aquilo que gostaríamos que ela fosse, mas apenas aquilo que é, por isso de nada vale andar aqui a fingir que temos dia-a-dias perfeitos e cor-de-rosa em que tudo é feliz, e alegre e os problemas não nos afectam. Somos humanos, somos de carne e osso, e ferimo-nos diariamente, por isso para quê fingir?
Será que sou só eu que penso este tipo de coisas, ou estes pensamentos são comuns e recorrentes para toda a gente? Porque é que ninguém dá a conhecer a sua verdadeira cara? Por medo de quê? Eu sempre fui ensinada a ser verdadeira e genuína, a gritar se tenho vontade, a chorar se me apetece e a não esconder nada. Mas a partir de uma certa idade, comecei a perceber que não era assim que as coisas funcionavam no mundo real, e deixei de lado essa minha postura. A partir daí tentei tornar-me uma pessoa um pouco mais fria, mais racional e menos autêntica, em nome de uma regra que a sociedade ou mesmo eu, já nem sei bem, me impôs, em prol também não sei bem do quê. Sei que é assim, mas limito-me a agir de acordo com isso, sem saber porque é que é assim. Um dia, algum gajo maluco deve ter espalhado numa carta corrente ou num e-mail desses que correm Mundo, que dava azar demonstrar aos outros os nossos próprios sentimentos e desnudar as nossas fragilidades e inseguranças, e começou a ser prática corrente ocultar as nossas amarguras e tristezas, na vã ilusão de que isso nos torna mais fortes. Mas é mentira, pois só nos torna mais fracos e incapazes de lidar com esses sentimentos, de os assumirmos perante os outros, e sobretudo perante nós mesmos.
Porque às vezes passamos tanto tempo com a máscara, que acabamos nós próprios por acreditar nas tristes mentiras que contamos aos outros.


Rita


Texto registado no IGAC

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Amor pela Boca



Vou fazer um jantar especial em minha casa e convidar alguns amigos e aquele alguém especial. Mas o que é que eu vou cozinhar? Tem de ser uma coisa elaborada e sofisticada, que eu não vou convidar o pessoal e depois servir bifinhos com natas e cogumelos! Tem de ser uma coisa em grande!
Decido começar a investigar bibliografia sobre culinária, e é com essa ideia em mente que me dirijo a uma enorme livraria no Saldanha. Chego lá com uma energia fora do normal, e decido embrenhar-me nos livros. Adoro livrarias. É um espaço amplo e iluminado, mas não em excesso. As paredes estão forradas de livros, desde o chão até ao tecto, e tudo está organizado e dividido por temas: Actualidade, Arquitectura, Design, Direito, Economia, Esoterismo, Política, etc. Cheira a papel novo, a letras, e a livros por abrir. Simplesmente delicio-me com este cheiro, e sinto que podia passar a minha vida toda aqui, ou pelo menos, uma parte significativa dela. Tudo está decorado em tons sóbrios de castanho e preto, com estantes em madeira, e existem diversos sofás de couro preto espalhados pelas diferentes secções. Uma empregada de meia-idade, com carrapito vermelho, óculos de massa pretos, e uniforme cinzento dirige-se a mim com um ar austero. Parece uma governanta daquelas mansões fantasma, ou então uma directora de um colégio interno. Sorrio-lhe, um pouco intimidada, e pergunto onde é que fica a secção de culinária.
Ela aponta-me com um sorriso um bocado altivo, um canto ao fundo da loja, e eu avanço a passos largos e confiantes nessa direcção, com a sensação de que algo vai mudar na minha vida em curto espaço de tempo. Se calhar ela devia pensar que eu ia pedir um livro de economia ou de política. Agora deve estar a achar que sou uma doméstica básica. Bem, não quero saber, era o que mais faltava estar-me a preocupar com o que pensa uma empregadazeca de balcão com carrapito vermelho.
Descubro com espanto que existe vasta bibliografia sobre culinária, pois centenas de livros apelativos se encontram nesta secção, desde cozinha italiana, japonesa, oriental, africana, indonésia, australiana, portuguesa, essa não que já conheço, até livros sobre cozinha de fusão e de moléculas, com tubos de ensaio na capa, e minhocas azuis e verdes fluorescentes que mais parecem saídas de um filme de ficção científica. Isto é que já é demais para mim, custa-me a aceitar que a comida se faça com fórmulas matemáticas e em tubos de ensaio, em vez de ser nos tachos e panelas e no tão tradicional forno a lenha. Isso para mim não é comida, é um atentado. Mais valia fazerem um comprimido que substitua todas as necessidades nutricionais diárias, assim já ninguém precisava de comer, nem de sujar louça. Era bom para os solteiros, que têm preguiça de cozinhar. Um comprimido ainda vá, agora chamar cozinhar a deitar uns pós e líquidos dentro de tubos de ensaio, esperar que aquilo deite fumo e agitar numa máquina que parece de análises sanguíneas, é muita ficção científica para mim. Logo eu, que odeio a Guerra das Estrelas. Bem, mas vou esquecer estes atentados gastronómicos que não são o que eu estou à procura. Percorro as estantes com o olhar, e sinto-me em casa. A livraria está deserta, só está um senhor na secção de Economia, sentado num dos sofás de couro preto, com o olhar perdido em livros muito chatos, cheios de números e teorias sobre a macroeconomia, e sem desenhos, nem cores.
Tenho de que dar uma vista de olhos geral e optimizar as minhas decisões, pois com os meus recursos orçamentais só vou poder levar um livro, por isso tem de ser um mesmo bom e completo, com receitas maravilhosas, sofisticadas, fáceis de fazer, e tem que ser barato. Bem, sou mesmo exigente.
Um livro com deliciosas iguarias na capa, e com fotografias apelativas chama-me a atenção. É um livro de cozinha indiana de uma senhora hindu que me deixa completamente louca. Chama-se «Amor pela Boca». Sinto uma emoção tão forte, que sei que tenho de comprar aquele livro, pois algo me diz que ele é o instrumento essencial e indispensável para a minha felicidade neste momento! Perfeito, na contra-capa para além de descrever e originalidade e beleza da comida indiana, ressalta também o seu poderoso efeito afrodisíaco! Lindo!
Abraço-me instintivamente ao livro com gratidão e reconhecimento, como se ele fosse o meu novo e melhor amigo, e dirijo-me à caixa para pagar, tão feliz, que parece que vou a flutuar em cima de nuvens. Olho para a página inicial do livro e procuro descortinar o preço. Cento e dez euros? Um livro? Ainda por cima de culinária? Estarei a ver bem? Compreendo agora porque é que Portugal tem a taxa mais reduzida da Europa de venda de livros.
Decido que aquele livro tem de ser meu, custe o que custar, aliás tenho a íntima convicção de que ele foi escrito a pensar em mim. Contudo, a miséria franciscana em que me encontro deixa-me inquieta, porque já estamos no fim do mês e ainda não recebi, e tenho o dinheirinho todo contado para as minhas despesas. O que vou fazer?
Volto para trás para ver se não há uma versão mais reduzida e económica do dito livro, assim tipo de bolso ou qualquer coisa semelhante. Pode sempre haver um livro de bolso de comida indiana, não é?
Após apurada análise de tudo o que está ali naquela maldita secção de culinária, concluo que os livros são todos caríssimos e excedem largamente as forças do meu orçamento.
O único que poderia comprar chama-se «Cozinha para principiantes», tem uma capa muito feia, amarela, com uns legumes, e só ensina a fazer arroz branco, ovo estrelados e peixe cozido.
Penso que é melhor comprar o livro indiano no princípio do mês. Porém, nada me impede de passar uma ou duas receitazinhas para me ir entretendo a praticar, antes de comprar o bendito livro, e assim posso fazer o jantar à mesma! Sinto-me muito envergonhada ao tirar da mala o meu conjunto de bloco e caneta da Agatha Ruiz de la Prada, mas sei que é por uma boa causa, porque afinal de contas, os meus propósitos são extremamente louváveis.
Olho em redor e a livraria está deserta. Começo a passar as receitas a uma velocidade supersónica, como se as minhas mãos estivessem ligadas à corrente eléctrica. Mas quando estou no melhor da festa, começo a ver dirigir-se a mim, com cara de poucos amigos, a funcionária-governanta da livraria. Os passos dela assemelham-se aos de um dragão enfurecido, e parece que vem a deitar labaredas e fumo pelas narinas. Tem os olhos de tal maneira fora das órbitas, que até saem dos grossos óculos de massa, e caminha pesadamente na minha direcção. Oiço os passos dela, nuns sapatos pretos de salto grosso, que ritmadamente, batem no chão de madeira da livraria, como tambores que anunciam a minha desgraça eminente. O cabelo vermelho, puxado para trás no carrapito, dá-lhe um ar terrivelmente demoníaco, como se me viesse me infligir um castigo violento. O monstro já viu o que eu estou a fazer.
Tenho vontade de fugir, mas não posso. Estou paralisada. Tenho o livro aberto, em cima dele o bloco, e na mão a caneta. Que mais provas são precisas para demonstrar o flagrante delito? Absolutamente nenhumas. Tento reagir mas estou dormente e tenho picadas nas mãos. Parece aqueles sonhos em que vamos a fugir de um monstro, mas não conseguimos correr, caímos, e o monstro acaba por nos apanhar com toda a facilidade.
Com a pressa, ao fechar o livro para a empregada-dragão não armar problemas, a caneta escorrega-me das mãos e faz um enorme risco preto, mesmo na página do frango com caril e arroz biryaani.
A empregada-dragão pergunta-me com péssimos modos, o que é que estou a fazer. Eu fico muda, sem saber o que lhe responder. Mas não é preciso, porque ela já me topou a léguas, e sabe perfeitamente o que é que eu estava a fazer. Diz-me com ar de superioridade e arrogância, com os óculos encavalitados na ponta do nariz, que não posso estar a passar as receitas, ou compro o livro ou me vou embora.
Uma onda de raiva e um sentimento de humilhação sobe por mim acima, tenho vontade de lhe perguntar quem é que ela pensa que é para estar a falar comigo daquela maneira. Porém continuo calada, pois sei que se dissesse isso ia ouvir o que não queria.
Sinto vontade de chorar quando ela me tira o livro das mãos, abre-o na página e vê o enorme risco de esferográfica preto, mesmo por cima da perna de frango. Esbugalha os olhos como se fosse um peixe a asfixiar, e diz-me que já que danifiquei o livro tenho de o levar. Tento disfarçar com um enorme rubor que me queima as faces, e digo-lhe que aquilo não é um risco, é apenas sujidade, e já estava assim. E, acto contínuo, esfrego o dedo por cima do risco, pedindo a Deus que o meu dedo tenha poderes mágicos para apagar a porcaria do risco. Mas nada. O risco continua ali, a olhar para mim.
A bruxa da empregada-dragão diz-me, com o dedo espetado em direcção à minha cara de pânico, que tenho de levar o livro, senão vai falar com o gerente.
As pessoas que entretanto entraram na livraria, começam a aperceber-se do que se está a passar, porque está tudo em silêncio a caminhar pelas prateleiras, e só se houve a voz da bruxa-dragão, a matraquear e a dizer que tenho de levar a merda do livro. E eu com vontade de lhe dizer que até queria levar o livro mas apenas no princípio do mês!
No entanto, percebo que não há alternativa, e decido levar o livro e enfiar a viola no saco, para não passar uma vergonha ainda maior.
A mulher-dragão com escamas verdes e labaredas a sair do nariz escolta-me até à caixa como se eu fosse uma criminosa em fuga. A vergonha é tanta, que sinto o chão a fugir debaixo dos pés, e uma lágrima assoma ao canto do olho. Limpo-a com violência e decido que vou ser forte: estendo o cartão multibanco à empregada da caixa, e rezo para ter dinheiro suficiente na conta e aquilo não começar a apitar, senão aí é que vai ser do pior.
Suspiro de alívio ao não ouvir nenhum apito, e ao ver o talão a sair lentamente da máquina. Saio cabisbaixa, e decido nunca mais voltar àquela livraria.
Rita
Texto registado no IGAC