quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Ser Feliz


A vida não é uma fórmula científica, uma equação matemática ou uma qualquer definição de dicionário.
Ela resume-se a uma série de factos, acontecimentos e histórias, descoordenados, incoerentes, desconexos, e aparentemente ilógicos e contraditórios. Mas no fim, tudo acaba por fazer sentido. Por isso é que a vida é bela. Por causa da sua imperfeição. O perfeito não existe, é uma ilusão, por isso é que a beleza da vida está na assimetria e na desordem das coisas e dos sentimentos. Nem tudo se explica racionalmente.
A vida é uma sucessão de caminhos, estradas, atalhos e becos sem saída. A virtude está em encontrarmos o trilho certo para a felicidade, nesta imensidão esmagadora do labirinto que é o Mundo.
Por isso, ser feliz é bem mais do que viver.
Vives uma existência cansada, monótona e cinzenta. Acordas de manhã, exausto, vazio, esgotado e perguntas-te porquê. Sabes exactamente como vai começar e acabar o teu dia. Tornaste-te um animal de rotinas, despido de emoções. O teu coração mantém um ritmo constante e organizado, como tudo o que fazes. Divides a tua vida metódica e ordenadamente, entre o trabalho, a casa, e as responsabilidades. Não tens tempo para ti. Não tens tempo para pensar. Vives assim, numa ordem artificial e criteriosa de horários e compromissos, que os outros e tu mesmo, criaste para ti e aceitas como a mais adequada e conveniente. Buscas um ideal naquilo que fazes. A felicidade? Pensas que sim, mas não. O conforto. A felicidade suprema é sentir que não se quer mais nada da vida, que já temos tudo o que ela tem para nos oferecer. E isso, é pela própria natureza das coisas, impossível, já que o ser humano é cronicamente insatisfeito.
Ser feliz é querer abraçar o Mundo e engoli-lo de um só fôlego, é acordar de manhã e olhar para cada dia não como uma sucessão de obrigações a cumprir, mas sim como se ele fosse o último das nossas vidas. E hoje em dia, isso é algo tão raro como um cometa que passa pela Terra. Todos nós vivemos existências que nós próprios e a sociedade nos impõem como sendo as mais correctas e as nossas de pertença. Mas eu recuso-me a isso.
Quero sentir-me viva. Quero desafiar a ordem natural das coisas. Quero adrenalina, risco, emoção, loucura e tudo aquilo que faz o nosso coração bater mais forte e povoa a nossa vida de cores mais vivas. O mundo não pode ser só a preto, branco e cinzento. Ele tem tanto mais para nos oferecer…
Tenho uma casa bonita, elegante, bem decorada. Tenho um armário cheio de roupas caras, perfumes, maquilhagem, jóias e relógios. Tenho um emprego relativamente bem pago, onde sou admirada e respeitada. Passo férias duas vezes por ano. Vou a bons restaurantes e aprecio bons vinhos. Tenho uma família que me ama, senão da maneira que eu gostaria, da maneira que cada indivíduo tem de amar outro: única. Tenho poucos amigos, mas muito bons, que adoro. Tenho livros, músicas, fotos e histórias que reconstroem a minha existência e a perpetuam para a posteridade. Tenho momentos de extrema alegria e de intensa tristeza. E pergunto-me a mim mesma: é só isto a felicidade? Não. Não é só isto. Eu quero mais, quero sentir que estou viva, que tenho um coração a pulsar no peito com a força de cem tambores, e sangue quente a correr-me nas veias. Quero sentir emoção, quero andar num limbo, quero sentir as pernas a tremer, chorar, rir, sonhar e ter um orgasmo tudo ao mesmo tempo.
Estou farta de tentar ser a super-mulher-completa-mais-que-perfeita. A que trabalha fora de casa e traz trabalho para casa. A que lava, passa, arruma, limpa, cozinha tudo com um sorriso. A que está sempre bonita, arranjada, perfumada. A que organiza jantares e festas, é anfitriã, programa, sabe estar, receber e conversar. A que fala sobre política, actualidade, cinema e literatura com toda a gente. A que anima e faz rir as pessoas. A que resolve todos os problemas. Quando é que chega o momento em que posso fazer algo diferente do que aquilo que me exijo a mim própria, e que os outros traçaram para mim? Onde por mais errado, louco e suicida que possa ser, eu posso fazer aquilo que quero, desejo e tenho vontade? Quando deixo de pensar nos outros e penso apenas e só em mim?
É que sabes, eu tenho um pequeno vulcão dentro do peito, que de vez em quando precisa deitar a sua lava cá para fora. Pode estar adormecido por um tempo, mas está lá, prestes a entrar em erupção e tomar conta de mim, da minha cabeça e do meu corpo. Todos nós temos esse pequeno vulcão, em maior ou menor intensidade, mas há quem seja muito hábil em extingui-lo, arrefecendo-o e acalmando-o cada vez que ele quer entrar em erupção, de tal forma que ele acaba por se apagar. Mas eu não penso assim. Porque sei que este vulcão não existe eternamente. Sei que, mais tarde ou mais cedo, com o tempo, a idade e os cabelos brancos, o meu vulcão se vai extinguir, e vai deixar de deitar lava para todo o sempre. E aí, vai restar apenas uma cinza adormecida e fumegante dentro do meu peito, aquela de quem já não espera nada de novo da vida. Por isso, enquanto tenho esta força telúrica, quero aproveitá-la, quero vivê-la em toda a sua plenitude, quero ter os meus necessários momentos de loucura, aqueles em que me liberto, e sou eu de cabelos ao vento, pronta para ser amada como realmente sou. Porque eu sou mesmo assim.
Não tenho nada contra as regras, muito pelo contrário. As regras são essenciais para a vida comunitária. Eu tenho muitas regras na minha vida, máximas, princípios, padrões de comportamento. Mas quando são as regras que tomam as rédeas da nossa vida e nos sufocam numa existência que já não é a nossa, é a delas, então já não somos de carne e osso, mas sim autómatos. Regras demais esmagam-nos. Regras a menos geram o caos, e isso também não é bom. Por isso, há que encontrar o equilíbrio perfeito, e isso passa por acrescentar uma dose sábia e bem medida de loucura, ao nosso dia-a-dia frio, minimalista e metodicamente organizado.
Aí sim encontramos um ponto de convergência, e podemos começar a trilhar o caminho para a felicidade plena. Tudo o resto não passam de meras ilusões que nós criámos, para nos sentirmos mais seguros e confortáveis, e que aceitamos pacificamente, de tal forma que somos controlados por elas. Do que é suposto fazer-se e dizer-se. Dos protocolos, das convenções, do socialmente correcto, do expectável. Mas o Mundo não se mede em estatísticas e eu quero desafiar isso, e construir para mim uma vida diferente da de toda a gente. Por isso te digo para não teres medo de amar, de confiar, de sonhar, de arriscar. Afinal, tens medo de quê? De te magoar? Já sabes o que isso é. De tomar o caminho errado? Já lá estiveste. De te entregar? Não tenhas, porque a entrega é o acto de comunhão e partilha mais intenso que o ser humano pode experienciar.
Sei que, apesar de não o dizeres, e de lutares contra ti mesmo para tentar apagar o que vivemos, sentes por mim uma mistura de paixão, desejo, loucura, mágoa, arrependimento, cumplicidade, amizade, saudade, tudo metido na máquina e centrifugado a 1400 rotações. Então, não tenhas medo de o dizer, abre o teu coração e deixa o sol entrar com um sorriso, e de peito aberto, aspira a tudo aquilo que a vida te pode dar, não te contentes com o mediano e medíocre, sonha sempre mais alto e não tenhas medo de cair, porque o chão foi feito para as pessoas dele se levantarem, liberta-te de toda essa prisão de sentimentos em que vives. Vais ser mais feliz, garanto-te. Vais viver em comunhão contigo mesmo e com quem te rodeia. Vais tremer de excitação, gritar de fúria, chorar de raiva e tristeza, enlouquecer de desejo e só aí te vais libertar e pairar acima de ti mesmo, leve e tranquilo como nunca estiveste.
Não precisamos um do outro para viver, mas talvez e apenas para nos sentirmos vivos.
Eu quero e preciso sentir-me viva, libertar-me destas cordas que me amarram e me prendem a uma existência limitada e forçada. Por mais errado que seja, às vezes temos mesmo de fazer aquilo que nos apetece. E isso sim, chama-se simplesmente, ser feliz.



Rita


Texto registado no IGAC

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Ciência do Futebol



O futebol é uma ciência, e pode ser bastante interessante, dizias tu, tentando convencer-me.
Logo a mim, que sempre fui aclubística, e nunca me interessei por desportos. Na escola sempre fui um desastre a Educação Física, e pertencia aquele clã que inventa desculpas atrás de desculpas, sempre as mais esfarrapadas possíveis, para não ir para os campos jogar futebol, basquetebol, andebol e voleibol. Nunca tive jeito para nada disto, e era daqueles contributos que todos dispensavam nas equipas, porque marcava golos na própria baliza quando passava a bola para o guarda-redes, e não era nada bom. Então era sempre a última a ser escolhida, e mesmo assim as equipas digladiavam-se para não ficarem comigo, já que eu devia muito à perícia e ao jeito para o desporto. E depois ninguém me passava a bola, com medo que eu arruinasse todas as jogadas tácticas e andasse aos pontapés sem rumo. Por isso criei uma espécie de imunidade aos desportos de bola, e não me conseguem interessar, por mais que me esforce. Nunca tive clube, nunca torci por quaisquer equipas, e só há bem pouco tempo é que torço pela Selecção Nacional, mas aí com o fervor de um religioso que vai a Fátima pagar pelas promessas.
Por tudo isto, o futebol sempre me passou completamente ao lado, e nada mais representava para mim do que vinte e dois homens suados a correr atrás de uma bola, e a tentar marcar golo nas balizas adversárias. Um bocado à semelhança do que fazem no dia-a-dia, mas isso agora não interessa nada.
Mas quando tu entraste na minha vida, percebi que o futebol podia não ser só isso e conseguiste-me mostrar que eu estava a ter uma visão redutora das coisas. Desde logo, porque o jogo obedece a uma táctica, cada jogador tem uma posição, mas no entanto, não se resume a ela, e têm todos de jogar em conjunto, obedecendo a uma estratégia, mais ou menos coerente, que permita fintar os adversários e marcar golo na baliza deles.
Há também que estudar os adversários, dizias-me tu no sofá da sala, nas tardes chuvosas de Domingo, e eu enroscada em ti e tapados com uma manta, no calor dos corpos e das carícias.
E aí percebi que no futebol, tal como na vida, temos de estudar os nossos adversários, saber como se movem, o que pensam, e tentar antecipar as reacções deles, de forma a impedir que levem a sua avante e nos prejudiquem no jogo.
Mas isso, todos fazemos no nosso dia-a-dia. Andamos constantemente a analisar e a fazer juízos de valor sobre os outros. Quando percebemos que determinada pessoa não é de confiança, e logo é um potencial adversário, também adoptamos uma táctica. Seja a do desprezo, seja a de analisar essa pessoa, saber o que é que ela pretende na verdade, e o que vai fazer a seguir, para melhor nos podermos defender. Afinal, sobre este prisma, o futebol até pode ser interessante, reconheci.
Também me ensinaste o que era um canto, um livre, e um fora de jogo, e depois de me explicares, até consegui reconhecer quando os árbitros estão a ser uns sacanas.
Às vezes, quando anulavam certos golos do teu Benfica, juntava-me a ti no coro da indignação, e em uníssono insultávamos o árbitro, claro está que não havia fora de jogo nenhum, o golo era válido, pois com certeza. E eu, que nem nunca gostei de futebol, conseguia então entender porque é que este desporto move montanhas, galvaniza, emociona e faz as pessoas saírem do sério como se um golo marcado e a vitória do clube fossem um prémio da lotaria.
Explicaste-me que a táctica de jogo é importante para uma equipa ser vencedora, mas sobretudo o que conta é como a equipa consegue pôr em prática essa táctica e funcionar em campo como um todo, sem individualismos. E eu assenti, e depois de reflectir um pouco, conclui que também na vida isso se passa, já que as pessoas vivem centradas em si mesmas, no seu pequeno e egoísta mundo, sem reparar que o mundo real, o de lá de fora, não começa nem acaba na sua porta de casa. Existem biliões de pessoas com problemas tão ou mais graves do que os nossos, e temos de pensar no bem comum e em alcançar algo melhor e mais importante do que a mera satisfação pessoal.
E em todas estas coisas eu divagava, com a cabeça deitada no teu peito, olhando para o ecrã, e vendo a bola a saltitar na relva verde, sendo pontapeada uma e outra vez, e mais um remate à baliza que falhava, e depois a outra equipa retomava a posse da bola e tentava marcar e rematava, mas também não conseguia o golo. E tu indignado, como é possível tanta azelhice junta? Com a baliza ali desprotegida, nem assim conseguem marcar?!?
E em silêncio mais uma vez reflectia, que na vida também sucede exactamente o mesmo. Porque passamos o tempo todo a correr com o coração aos pulos, a suar, a sofrer e a lutar por algum objectivo e depois, quando estamos mesmo à beirinha de o alcançar, deitamos tudo a perder. Seja por falta de sorte, jeito ou outra variável qualquer, simplesmente, não conseguimos marcar golo e os sonhos caem por terra e sentimos que foi tudo em vão.
Mas tal como a equipa de futebol, também nos levantamos do chão e retomamos o jogo, novamente correndo, sofrendo e lutando até conseguir. E às vezes conseguimos mesmo.
Quando duas equipas empatam, mas daquele jogo há mesmo que sair um resultado, tem de se ir ao desempate por penaltis, o que é muito injusto, porque não se atende ao mérito das equipas, nem ao jogo que têm vindo a fazer até aqui. Porque se torna sempre bastante difícil para o guarda-redes defender um penalti.
E eu sei que é verdade, porque na escola também me punham sempre de guarda-redes, já que eu não jogava nada. Então se a defesa fosse boa, não se importavam de me pôr ali na baliza sabendo que haveria alguém que não deixaria a bola chegar até mim, para eu nem sequer ter de a defender. Por isso sei que é muito difícil defender estas jogadas, já que eu passava a vida a levar com boladas na barriga e na cabeça. E uma vez levei uma tão forte no nariz que até fiquei a sangrar, e decidi que aquilo não era para mim. Logo eu que gostava tanto de ballet, aeróbica e das aulas de dança que frequentava. Andar ali a levar com bolas no nariz só para manter as amizades é que não. Foi aí que passei a integrar o clã dos atestados e das dores de barriga. Assim, percebo perfeitamente que seja quase impossível para os guarda-redes defenderem aquelas bolas que parece que vêm a deitar labaredas, tal é a força com que são pontapeadas.
E tudo isto me fazia sorrir aninhada no teu peito, enquanto me ias dando lições sobre a ciência do futebol, que afinal é bem mais complexa do que o que parece.
E falavas de jogadores, de treinadores, das máfias do futebol, dos milhões e dos interesses envolvidos nas transferências de clubes, e obrigavas-me a ver o Dia Seguinte e o Domingo Desportivo, mesmo quando eu queria ver a novela ou um filme qualquer.
Depois explicaste-me também os vários tipos de competições que existem, o que é a Liga dos Campeões, quem participa, o que é a taça UEFA, quantos clubes participam, como são escolhidos, e montes de outras coisas que já não me lembro. E de cada vez que víamos um jogo, me perguntavas, em jeito de questionário de concurso, quais eram as competições e formas de selecção, e eu metia os pés pelas mãos e inventava montes de coisas e regras que te faziam rir e não sabias onde eu ia buscar aquelas ideias todas baralhadas.
E eu ria-me também e pedia para me explicares novamente, não porque me interessasse muito, mas apenas para te demonstrar que se eu quisesse, também podia perceber de futebol, embora nunca o tenha sabido jogar. E tu rias ainda mais, e lá começavas a interminável ladainha que me fazia sentir mole, sonolenta e a flutuar e ia enterrando a minha cabeça no teu peito e nas almofadas, na Liga dos Campeões e nas taças douradas passando de mão em mão.
Mas depois foste embora e eu esqueci tudo. Agora já nem sei o que é um canto, nem um fora de jogo, não torço por nada nem por ninguém e simplesmente desligo a televisão quando está a dar algum jogo. Não sei nada de equipas, jogadores, treinadores, ou competições. Para nós, o jogo acabou num empate, e eu até consegui descobrir porquê: é que no futebol, como na vida e no amor, é sempre necessária uma estratégia bem planeada, e eu, nunca fui muito boa nestas coisas.

Rita

Texto registado no IGAC

Cinco Números, Duas Estrelas



Se te sentires insatisfeita, escreve, já dizia a minha professora de Português do ensino secundário. E ela tinha toda a razão. Isto porque a escrever podemos ser quem quisermos, desde um agente secreto, ao vilão, à mulher-fatal, mesmo que no fundo sejamos um patinho-feio com medo de sair da casca do ovo.
A escrever podemos voar alto, lá a roçar a estratosfera, sem medo de cair, sonhar e divagar, criar fantasias mais ou menos reais, mais ou menos exequíveis, e deixar que os pensamentos fluam e se materializem num papel ou num ecrã de um qualquer computador, onde passam a ser reais e palpáveis.
Há várias formas de sonhar, e a minha sempre será escrever.
A escrever ninguém sabe quem somos naquele momento, e podemos ter as virtudes e qualidades que sempre sonhámos, mas com as quais a vida, a natureza ou outro elemento metafísico qualquer não nos bafejaram. Podemos contar histórias, relatos, verdades, mentiras, e ninguém sabe muito bem do que estamos a falar, se se trata da nossa vida, se é tudo inventado, ou se são histórias que já presenciámos ou ouvimos no metro ou no comboio de manhã, a caminho do trabalho, entre um jornal, uma revista e a música no mp3. Podem tentar fazer analogias com a nossa própria história de vida, porque todo o escritor é sempre um pouco autobiográfico, mas ficará indefinidamente a dúvida a pairar no ar, se falamos de nós, de uma personagem, ou de outro alguém que conhecemos noutra vida que vivemos.
Escrever é mesmo assim, não é para quem quer, é apenas para quem sente e pode. É para quem está na fronteira do sono e começa a ser bombardeado com letras gigantescas que formam palavras, até a consciência despertar a começar a formar frases, ideias e textos completos em fracções de segundos. É para quem está no meio de uma tarefa chata e começa a sentir algo estranho, luminoso, que aquece o peito e dá vontade de começar a correr e passar tudo para o papel para que nada se perca. É a sensação de plenitude que se tem, mesmo que se saiba que nunca ninguém vai ler tais escritos. Escreve-se com alma e coração, quando não se escreve, sai sempre uma grande porcaria, pelo menos isto era o que dizia também a minha professora de Português, que vestia umas calças de ganga com uns lápis bordados a cor-de-rosa, e umas camisolas de malha com mangas de balão e chumaços, já mesmo nos anos 90. Ela vestia-se muito mal e completamente fora de moda, mas lá que sabia escrever, sabia. E também sabia ser boa professora, o que hoje em dia é muito raro. Foi a primeira pessoa que chorou com um texto que eu escrevi, sem ser a minha mãe, e por isso nunca a esqueci. Foi também quem sempre me motivou a escrever mais e melhor, por isso foi um estímulo muito importante.
Sempre que estiveres insatisfeita, escreve, dizia ela. A levar à letra este conselho, que aliás é bem verdadeiro, e que sigo quase instintivamente, sem saber porque o faço, mas sabendo apenas que escrever alivia a minha insatisfação crónica e me preenche de alguma forma, eu passaria os dias a escrever. Como se o buraco de areia que escavo em mim diariamente até me sentir oca, pudesse de repente ser preenchido por um monte de palavras, pensamentos, reflexões, exteriorizações que me fazem sentir cheia como se tivesse almoçado três pratos cheios de comida, sobremesa e café. É assim que me sinto quando escrevo. Cheia, realizada, plena, feliz. Até podem ser só banalidades, podem os meus pensamentos ser recorrentes, posso usar clichés e lugares-comuns, posso falar do que toda a gente já sabe e não acrescentar nada de novo, mas sinceramente, estou-me nas tintas. Não escrevo para os outros, mas simplesmente para mim. Posso parecer egocêntrica, mas para mim escrever é um acto de amor, o amor que tenho pela própria escrita. Amo escrever, por isso escrevo com amor. Escrevo para me preencher, se alguém se identificar com o que escrevo, melhor.
Todos nós gostávamos de ser, ter ou fazer algo que não conseguimos. Todos nós temos sonhos, desejos, aspirações por preencher e alcançar. Para mim, eles estão todos ao alcance dos meus dedos e do meu pensamento, porque enquanto escrevo sou quem quero ser e vivo a vida que sonho ter. Sofro, exulto de alegria, rio e choro com um simples momento de escrita. Transcendo o imediato e transporto-me para outra dimensão, onde componho a minha vida, e a vida dos outros, à minha maneira e como eu a vejo.
Porque cada um vê as coisas como quer, como entende, como é melhor, como lhe convém. Por isso, não há verdades absolutas e tudo depende da interpretação que se faça dos factos.
Mas voltando à insatisfação, eu penso que hoje em dia as pessoas são muito insatisfeitas. A sociedade actual está sempre à procura de algo mais, nunca está contente com nada, vivemos um tempo em que ainda não se tem uma coisa e já se está a pensar no que se quer a seguir.
Dantes, na classe média, as pessoas tinham menos formação, arranjavam trabalhos modestos, ou tinham boa formação académica e arranjavam bons empregos a ganhar bem e sair cedo. Tinham a casa que podiam ter, andavam de autocarro, iam passear a Cascais no fim-de-semana, ou a Azeitão comer as tortas do Cego e eram felizes assim. Tinham três e quatro filhos, e as roupas, carrinhos e demais material infantil passavam de uns para os outros. As irmãs mais velhas davam o berço dos filhos ao futuro sobrinho que ia nascer. Na escola, as crianças aprendiam o básico e não havia cá actividades extra-curriculares. Actividades extracurriculares significava jogar ao elástico, à bola, ao pião, ao berlinde e às escondidas, e comer caramelos e chupa-chupas.
Passeava-se de mão dada com os pais no supermercado e à noite liam-se histórias aos filhos. As férias eram passadas no Algarve com uma casa alugada à quinzena para sete ou oito pessoas, ou na terra natal em casa das tias, tios, primos, e avós e serviam para matar as saudades da família e promover o convívio.
Hoje em dia, isto está totalmente fora de moda, e parece daquelas série antigas que passam na RTP-Memória.
Hoje a classe média é licenciada, mestrada e até doutorada, e ou tem a sorte de ter um belo tacho a ganhar um bom ordenado numa empresa ou Ministério qualquer, ou está numa caixa de supermercado, e por vezes, ainda melhor, no fundo de desemprego. Uns moram em grandes lofts ou moradias com vãos envidraçados, acabamentos xpto, móveis design, com jacuzzi nas casas de banho, azulejos de um designer espanhol que ninguém sabe quem é, mas que custaram 120 euros o m2, jardim, piscina, porta blindada, vídeo porteiro, domótica e demais comodidades. Os outros moram num T2 cinzento, cheio de humidade no tecto, têm sacos de roupa fora da estação na arrecadação a cheirar a bafio, e sonham com a casa dos primeiros.
Esses andam de jipe BMW X5 ou num Mercedes desportivo enquanto os outros têm um Opel Corsa de quinze anos com mais emissões de CO2 que um navio de cruzeiro, passo o exagero, e sonham com o carro dos primeiros.
Os primeiros vão passar o fim-de-semana à Serra Nevada onde têm um chalé, os segundos continuam a ir a Cascais, ao Guincho e a Azeitão comer tortas, porque isto há que saber ser pobre e feliz, e um pobre com a boca doce, é sem dúvida mais feliz.
Os primeiros têm um filho que se chama Martim ou Francisco e vai para os Salesianos ou para o Colégio Militar. Frequentará a esgrima, equitação, o judo, karaté, natação, piano, inglês e francês mesmo só tendo três ou quatro anos, mas que interessa isso agora? É de pequenino que se torce o pepino, lá diz o ditado popular…Ele há-de ser gestor como o pai, ou médico como o avô, e um destes dois há-de-lhe arranjar um tacho para perpetuar as tradições da família de ganhar bem e sair cedo.
Os segundos terão dois filhos, a Rute e o Filipe, que frequentarão a escola pública e nunca poderão andar na ginástica, nem na natação, no karaté, no piano ou ballet, porque os pais ganham mil euros por mês que mal dão para pagar a renda do T2 bafiento, quanto mais para estes luxos. Hoje também já quase não há histórias, nem tempo para elas, apenas a Play Station.
Agora os filhos ainda crianças, mandam nos pais, cobram, berram, exigem, chantageiam desde a mais tenra idade.
Os filhos dos primeiros fazem birras no El Corte Inglês e pedem tudo o que vêm, e os pais comprarão só para não os ouvir gritar mais. Os filhos dos segundos também gritam e choram no supermercado, mas só das primeiras vezes, porque facilmente percebem que gritar não os vai levar a nada, porque quando não há dinheiro, não há mesmo, venha lá quem vier. E as olheiras da mãe, e o ar baço do pai, de barba por fazer e mãos nos bolsos, elucidam claramente que não há brinquedos para ninguém. Mas também eles, esses pequenos seres, sonham já com a vida dos filhos dos primeiros…
Os primeiros passam férias três ou quatro vezes por ano, vão para as Maldivas no Verão, e deixam o filho com os avós paternos e maternos, à vez, que é para não os cansar muito.
Os segundos não vão de férias, porque simplesmente não podem, e aproveitam o subsídio para amortizar mais umas prestações do T2 bafiento…
E é assim que a vida se molda e se estrutura, sem atender ao mérito, ao empenho, ao esforço, às qualidades pessoais de cada um. O tempo vai passando e a vida não dá grandes condições para mudar o estado de coisas instituído das pessoas que vivem vidas remediadas. Por isso, a classe média, sector pobre, sonha com o Euro Milhões, joga todas as semanas nem que seja apenas dois euros, que isto quando tem que sair, tem mesmo, e não é por se jogar mais que há-de sair, argumento típico de quem tem o dinheiro curto na carteira. E alimentarão os sonhos de uma enorme casa, de viagens, melhor escola para os filhos, mais filhos talvez, ajudar os pais, os amigos e os necessitados. E assim se vão preenchendo pouco a pouco, a si mesmos e aos buracos da insatisfação que teimam em alastrar pelos corpos, colando bolas de espuma nos bocadinhos vazios do peito que teimam em ruir devagarinho, com o passar dos anos e dos sonhos que ficam para trás. Assim vão sonhando a vida que queriam ter, e tapando as fendas da ilusão de uma melhor, que permitisse não andar sempre a fazer contas, a esticar o dinheiro, a esperar pelo reembolso do IRS e que o seguro do carro se atrase. Assim conseguem ir vivendo a existência mais colorida que gostariam de ter, guiando o carro que sempre sonharam, indo de férias para uma ilha deserta, tudo apenas até à sexta-feira seguinte, em que o prémio afinal não sai, mas bolas, desta foi quase, tive os números todos próximos, para a semana é que é, se Deus quiser. E em vez das tortas de Azeitão, perguntam-se a que saberá o champanhe e caviar que vêm nas revistas do jet-set os ricos a beber e a comer, e imaginam tudo isto ao alcance de cinco números e duas estrelas.
Mas para mim, estrelas são apenas as que vejo no céu quando a noite cai e a lua ilumina o mundo. Por isso mesmo, continuo a preferir escrever.

Rita
Texto registado no IGAC

O início de uma história

Como todas as histórias dos livros têm início e fim, também as da vida seguem idêntico percurso.
Este blog pretende essencialmente servir como um escape da rotina diária, e ser um espaço de reflexão, pensamentos, confissões, sob a forma escrita.
Escrever é a minha paixão, o meu sonho, e por isso quero vivê-lo na sua plenitude!