sábado, 31 de outubro de 2009

A Penthouse


Quando tinha três anos detectaram-me um problema qualquer no coração. A minha mãe ao pôr-me a mão no peito, sentiu que o meu coração estava a bater muito depressa e num ritmo irregular, e achou estranho. Levou-me ao médico pediatra. Ele auscultou-me com o estetoscópio e franziu o sobrolho, e ali ficou a ouvir atentamente, em silêncio, com o estetoscópio de metal gelado, colado ao meu peito. Eu não me lembro disto, só tinha três anos, mas sei-o quase de cor, só de ouvir a minha mãe contar… A partir daí encaminhou-me para um cardiologista pediátrico, e seguiram-se dúzias de exames ao coração, com a tecnologia mais avançada da época, no consultório daquele que era o melhor cardiologista pediátrico do país. A minha mãe, coitada, tinha de juntar dinheiro o ano inteiro para eu poder ir à consulta anual, e fazer os respectivos exames de controlo.
Até hoje, não sei muito bem o que tive ou ainda tenho. Na altura, o cardiologista pediátrico supra-sumo, após dezenas de exames e de auscultações intermináveis com o odioso e frio estetoscópio no meu peito, diagnosticou-me um problema numa válvula. Supostamente, a referida válvula teria uma configuração anatómica diferente do habitual, com mais tecido, e numa forma diferente, e logo deixaria passar menos sangue do que o que devia, e por isso provocava-me maior cansaço. Por sua vez, também havia um ligeiro «click», que era audível à auscultação, e que deixava todos os médicos fascinados pelo meu coração, tentando descobrir que raio tinha eu dentro do peito, para fazer aquele barulhinho tão intrigante.
Mas mesmo eu, até hoje, também não sei responder o que tenho dentro do peito que faz esse barulhinho, por isso também nunca os pude ajudar a descobrir, qual a origem do click no meu coração.
O meu coração tem quartos, halls, jardins, piscinas, galerias de arte, moradias, apartamentos, e uma penthouse. É uma autêntica cidade. É um pequeno mundo, o meu pequeno-grande mundo. O Gabriel Garcia Marquez diz que o coração tem mais quartos que uma casa de putas, e eu concordo plenamente com ele. O meu coração tem pessoas, animais, lugares, flores, árvores, cores, histórias, livros, canções, recordações, cheiros e sensações.
Tu também estás lá, mas não quero falar muito disso. Posso apenas dizer que estás numa pequena casa térrea com jardim, arrendada, e o contrato está prestes a terminar, ou assim eu o espero. Por isso tens guia de marcha com ordem de saída, embora um pouco indefinida, dependendo da data em que o contrato de arrendamento da tua casinha termina. E isso eu também não sei…
No meu coração está a minha família, a minha mãe, pai, irmãos, à minha avó, o meu avô…Estão as tardes em que o meu avô me ia buscar à escola e íamos comer gelados, e ele me comprava presentes. E depois pedia, não contes nada à avó, senão ela diz que eu te estrago com mimos. E estragava mesmo, porque tudo o que eu pedia, o meu avô fazia, ou comprava, só para me ver feliz. Sem saber talvez, que só pelo amor dele, eu já era a menina mais feliz e amada do Mundo. O meu avô levava-me ao café e fazia o totoloto e o totobola enquanto punha o dedo na boca num grande schiuuuu e me pedia para não contar à avó. E dizia que ainda ia ser rico e ter uma sorte grande. E aí iríamos morar todos para uma grande casa com jardim, piscina e cães e gatos para eu brincar. Nesse dia da sorte grande ou da lotaria, íamos sair do nosso apartamento no terceiro andar de uma rua movimentada e cinzenta de Lisboa, e eu poderia finalmente aprender a andar de bicicleta sem medo de ser atropelada. E poderíamos correr à vontade, eu, o avô e a bola sem ser no Parque Municipal. Tudo isto dizia o avô enquanto sorria e flutuava em sonhos esfarrapados como bolas de algodão. O meu avô era um sonhador, e sempre alimentou os seus sonhos com a esperança de que um dia eles se fossem concretizar. A maneira como o avô falava, parecia fazer crer que aquilo ia mesmo acontecer, tal era a certeza e convicção que ele punha nas palavras e na forma como as dizia. De tal forma que eu sempre lhe perguntava, de cada vez que via mais um boletim do totoloto: é desta, avô? É desta que vamos ficar ricos? É filha, o avô tem a certeza que desta é que é mesmo, o avô tem uma grande fé nestes números. E eu ria, enquanto trincava um chupa-chupa, e pensava na boneca que ia pedir ao avô, quando o grande dia chegasse.
Mas esse dia nunca chegou. Mas penso também que o avô nunca desistiu que ele chegasse, até ao último dos seus dias. O avô era um jogador nato, e embora nunca tivesse causado prejuízos de maior à economia familiar, chegou a provocar alguns desequilíbrios orçamentais. Eram tempos muito difíceis, em que o dinheiro não abundava, e não existia a facilidade de acesso aos bens de consumo que existe hoje. As pessoas tinham pouco, e davam muito mais valor ao que tinham, tudo era motivo de alegria e orgulho, cada pequena migalha que se conquistava. Não é como hoje, em que as pessoas banalizam as coisas de tal forma que já não é concebível viver sem elas, mas também não lhe dão qualquer valor, precisamente porque são normais e toda a gente as tem.
O avô ia comigo apanhar musgo para pôr no presépio de Natal. E apanhávamos também pedras, e areia para fazer os caminhos, pelos quais os reis magos iam levar as oferendas ao Menino Jesus. O avô levava um canivetezinho suíço, que sempre o acompanhava, e tirava lascas perfeitas de musgo verde e sedoso das paredes, que levávamos para casa e regávamos com um borrifador para não secar, até ao Dia dos Reis, em que desmanchávamos tudo. Depois fazíamos a aldeia, cheia de caminhos, água, pontes, casas, e por fim, as figuras tradicionais do presépio. Ficava lindo, e para mim o presépio era mil vezes mais importante do que a árvore de Natal. Talvez porque adorava ir com o avô, cheia de casacos, gorro e cachecol, o ar gélido a sair da boca, e a fazer fumo, e o avô sempre a dizer, cuidado para a menina não se constipar, Maria, põe-lhe o cachecol e as luvas. E a avó sempre a enterrar-me o gorro na cabeça e a pôr-me o cachecol em cima da boca. E lá íamos nós para o campo de mãos dadas, o avô levava um saco para pôr o musgo, as pedrinhas e a areia, e eu levava a alegria dentro do peito, porque ia fazer o presépio com o meu avô.
O avô tem a penthouse maior, mais luxuosa e confortável do meu coração, com usufruto vitalício. Embora na vida dele, o grande dia em que ia ganhar um prémio milionário e levar-nos a todos para uma casa linda e grande nunca tivesse chegado, eu dei-lhe de presente, o canto mais especial e bonito do meu coração. Onde ele irá habitar para todo o sempre. O avô aí está, nesse cantinho único do meu coração, e nunca de lá vai sair. Às vezes, parece que até o oiço rir dentro do meu peito. Entristece-me saber que ele não me viu crescer, não me viu entrar para a faculdade, acompanhou nos últimos anos da vida dele a fase pior da minha vida, em que eu era uma adolescente revoltada, e ele um velhinho maravilhoso que me dava sempre razão, e me defendia perante tudo e todos, mesmo que eu estivesse a fazer a maior asneira do Mundo. Tenho pena que ele não visse a minha bênção das fitas, o meu primeiro emprego, e um dia não possa ver o meu casamento e os meus filhos.
A vida é muito injusta mesmo, porque me levaste o meu avô tão cedo? Fazes-me tanta falta avô, tu que foste mais que meu pai, tu que me criaste, embalaste, contaste histórias, viste nascer os meus primeiros dentes, me levaste ao médico nas noites febris, aturaste as minhas birras, que me levaste à escola, me sentavas a teu colo, me ensinaste à jogar às cartas, ao dominó, ao xadrez, e a tudo o que era jogos. Avô, às vezes ainda falo contigo à noite, e te peço ajuda para as decisões mais difíceis, será que tu me ouves? Onde tu estás, consegues ver-nos, tens saudades nossas? Avô, eu nunca te esqueço, nunca, e tenho tantas saudades tuas! Às vezes rio-me sozinha a pensar se tu voltasses daí de onde estás há já quatorze anos, não havias de conhecer este mundo maluco. Agora há tanta coisa nova e diferente, que tu não ias acreditar: telemóveis, que são telefones pequeninos que toda a gente tem, e usa a todo o instante, deve ser para não nos sentirmos tão sozinhos, dão para telefonar e para mandar mensagens escritas, ver as pessoas com quem estamos a falar, tirar fotografias, etc. Há uma coisa muito gira, que te tinha dado muito jeito no teu tempo, que é o GPS, que funciona através de um satélite, e dá para ver qual é o sítio onde te encontras. E se estiveres perdido, ele diz-te qual o caminho certo para onde tens que ir, e mesmo se te enganares, ele ajuda-te a chegar lá. Se houvesse GPS no teu tempo avô, a avó de certeza que te tinha comprado um, para te ajudar a encontrar o caminho certo para saíres do jogo, e não voltares lá mais. Mas paciência, avô. A vida é mesmo assim….
Hoje em dia, os computadores também fazem coisas incríveis, não estás bem a ver, e eu também nem te sei explicar, porque para mim, tudo isto são banalidades. E sei que se tu visses isto tudo, com os teus olhos enormes e curiosos, não ias acreditar, e ias pôr a cabeça entre as mãos, e sentar-te no sofá, como tu fazias quando não sabias o que dizer, e estavas impressionado com alguma coisa.
Mas voltando ao coração, depois de tantos anos, os médicos ainda não sabem bem o que é que eu tenho afinal. Há uns anos num exame de rotina, um médico viu um fluxo de sangue estranho e disse-me que podia ser um canal aberto, e se fosse isso teria que ser operada. Pensei que estava a sonhar, caiu-me tudo ao chão. Então passados tantos anos, ninguém viu que este suposto canal estava aberto? Agora com esta idade é que me vão operar? Seguiram-se mais dezenas e centenas de exames, desta feita, mais sofisticados e caros ainda, que a saúde em Portugal está pela hora da morte, e só com cunhas é que uma pessoa se safa, e mais uma vez todos os médicos fascinados pelo click do meu coração, que ainda ninguém conseguiu descobrir de onde vem, nem mesmo eu, que poderia ter uma explicação menos técnica, e mais emocional para ele, mas nem mesmo eu sei….Depois de ouvir muitas opiniões diferentes, e nada conclusivas, regressei ao meu cardiologista de infância, que quase não me reconheceu, pois já tinham passado muitos anos. E mais uma vez, o estetoscópio no meu peito, e mais uma vez, o sorriso dele a dizer baixinho, este click. E eu só pensava, oh doutor, eu não quero saber do click, doutor eu nem sequer o oiço, e sinto-me bem, doutor, eu até faço exercício, eu até consigo correr para apanhar o metro de manhã, doutor, não deve ser nada de mal, senão eu tinha de ter alguns sintomas. Eu não quero saber do click, a menos que o doutor me diga que este barulho é alguma coisa de mal. Se calhar por causa desse maldito é que eu ainda não encontrei o caminho da felicidade, e me sinto sozinha, mesmo quando estou rodeada de pessoas que me dão atenção e carinho. Será por causa dele que há dias que tenho o coração apertado e esmigalhado, e pareço carregar o Mundo nas costas e as desgraças dos pobres, fracos e oprimidos, todas no meu peito, doutor?
Queria ter tranquilidade comigo mesma, conhecer-me, aceitar-me, sentir-me bem como sou, parar de ser ansiosa e querer controlar tudo, querer antecipar reacções antes das atitudes que as desencadeiam, querer interromper e alterar o curso natural das coisas e acontecimentos, só porque é aquilo que eu acho mais correcto, deixar de ser insegura…Será que isto tudo, é por causa do click, doutor?
Será que é por causa do click que o meu coração vive encolhido, e que eu não consigo esquecer o passado?
Tem sido o click misterioso que tem destruído a minha vida amorosa, doutor? É por causa dele que até hoje o meu coração anda doente, não tem um dono em condições, que goste dele, que o estime e o ame para todo o sempre, a sério, com corpo e alma?
Mas as palavras não saem, e eu perco-me em pensamentos tristes, enquanto sinto o estetoscópio gelado no peito. Mas já nem me importo, de tão familiar que me é a sensação. E para o doutor também, que fecha os olhos, concentrado, a ouvir as batidas irregulares e descompassadas do meu coração, enquanto esboça um leve sorriso. E nesse momento, eu tive a certeza, que com este estetoscópio tão moderno, também ele conseguia ouvir, não só o click do meu coração, mas por detrás dele, o riso alegre do avô que me acena da janela da penthouse no meu peito.
Rita
Texto registado no IGAC

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Cheiro a Amor




Escrevi-te uma carta à moda antiga, cheia de letras redondas e tristes, num papel bonito, com cheiro a amor. Ficaste surpreso, indeciso, hesitante. Posso até arriscar, estupefacto? Mas porquê tanto espanto? Com o conteúdo ou com a forma? Duvido que seja pelo conteúdo, pois já te expus o que sinto muitas vezes… Assim sendo, só pode ser pela forma.
Sim, eu continuo a escrever manualmente e em papel. Qual o problema, podes-me dizer? Tu sabes que eu não gosto de máquinas e um computador é muito mais impessoal, pelo que só recorro a ele quando é mesmo necessário. E além do mais, com estes vírus e bichos esquisitos que andam por aí, arriscava-me a perder tudo. Para isso é que existem os backups, dir-me-ias tu com o teu ar paternalista, explicando em seguida que backups são cópias de segurança dos ficheiros que temos, para evitar perder coisas importantes.
Pena que eu não fiz um backup de ti…se calhar a esta hora ainda te tinha, algures guardado num cd, numa pen, ou até no meu ipod. Se eu tivesse feito uma cópia de segurança de ti, as coisas eram diferentes, tenho a certeza.
As lâmpadas da dispensa não estavam fundidas há três meses, e eu não me irritava tanto e gritava sozinha com o computador e com a impressora quando eles me dão chatices.
Não reclamaria sozinha no carro, do meu chefe, dos colegas, das inquietações, do cansaço e do excesso de trabalho pois ligaria para ti e correria para os teus braços, e tu far-me-ias rir e esquecer tudo isso.
E lá estarias tu, meu porto de abrigo, para me passar a mão pela cabeça e solucionares os meus problemas num passe de mágica, para me dizeres para ter calma e que tudo era simples.
Mas chego à conclusão que a vida não é nada simples. As coisas não são simples, por mais que as pessoas as tentem fazer parecer. As pessoas, essas, são as que menos simples são. A minha avó diz, e tem toda a razão, que viver não custa, custa é saber viver.
Porque apesar de as coisas já não serem simples em si mesmas, nós tornamo-las mais complicadas ainda. Passamos a vida inteira a lutar por algo ou por alguém, e sonhamos com esse objectivo inatingível, mas quando finalmente conseguimos, deitamos tudo a perder, seja por estupidez, orgulho, burrice ou outra paragem de cérebro qualquer. Só damos valor às coisas em duas situações: ou quando simplesmente não as temos, o que é problemático, ou quando as perdemos, o que é pior ainda, porque nos cria aquela sensação de um punhado de areia que se escapa por entre os dedos. A felicidade é assim…fugaz e efémera.
É um conceito tão perfeito que não pode ser um estado contínuo. Felicidade pressupõe a ausência de tristezas, mágoas, ressentimentos, agruras de todo o tipo e espécie. Ora isso é tecnicamente impossível, porque as vidas perfeitas não se vendem em pacotinhos cor-de-rosa com cheiro, com uma pastilha de morango como brinde.
As vidas perfeitas não existem, assim como a felicidade plena é um mito.
Todos nós temos os nossos momentos de felicidade, é certo. Aqueles em que tudo fica às bolinhas azuis e roxas, em que nos sentimos leves, amados, desejados, com sorte na vida, no amor e no jogo. Que temos força para lutar contra o Mundo se for preciso, que nada de mal nos vai acontecer. Que somos lindos e deslumbrantes, e não há melhor que nós.
Mas infelizmente, não passam disso mesmo: de momentos.

Porque a seguir vem logo algo que ensombra a nossa felicidade e nos faz aterrar com os pés no chão a toda a velocidade, tipo carta do Ministério das Finanças. E ver que a vida afinal, só é colorida às vezes. E que não existem apenas cartas de amor.

Rita



Texto registado no IGAC