domingo, 6 de dezembro de 2009

Faltas-me


Talvez me falte algo, e ainda não tenha percebido o quê.
Talvez seja uma enorme falta de tudo, que me faz vaguear neste vazio, sem rumo, sem norte.
Mas pronto, penso eu que isto não será sempre assim…resta-me o consolo de ser apenas uma fase menos boa da minha vida que estou a passar.
Aliás, agora as fases estão super na moda, e são desculpa para tudo: para acabar relacionamentos, para usar as pessoas e maltratá-las, para agir incorrectamente, para se cometer as maiores irresponsabilidades e inconsciências, para afastar quem gosta de nós, para faltar ao emprego…
As fases são as maravilhosas desculpas da sociedade moderna para as falhas dos indivíduos. São uma forma de desculpabilização tão inócua e hipócrita que toda a gente recorre a elas. É tão simples dizer: «estou a passar uma fase», ou então para justificar determinado comportamento menos adequado, «é só uma fase má».
Mas eu acho que chega de fases e chega de desculpas. Que as pessoas comecem a dar a cara e a assumir os próprios erros, pois só lhes vai fazer bem. Aprendam a ter a humildade de pedir desculpa quando erram…de lamentar magoarem quem amam…Não é vergonha nenhuma pedir desculpa e mostrar arrependimento. Muito pelo contrário.
Pedir desculpa significa crescer, ter noção do que é bom e mau, do agir bem e do agir incorrectamente. E acho que isso só valoriza o ser humano. Assim como não é vergonha nenhuma chorar…
Nem gritar, berrar, esbracejar, espernear quando estamos tristes, furiosos ou simplesmente descontentes.
Afinal, se nos dotaram de sentimentos é para podermos sentir. Não somos máquinas, somos feitos de carne e temos sangue quente a correr-nos nas veias.
É tão bom sermos autênticos…dizer o que pensamos num ímpeto, num atropelo, deitar cá para fora tudo o que temos de bom e de mau.
Mas quanto mais genuínos formos, mas sensatos temos de ser, para termos capacidade de reconhecer os nossos erros, pois quem deita cá para fora tudo o que tem, num sopro de desafio ao Mundo, tem o dobro das possibilidades de ferir alguém por falar demais…
A vida é complicada.
Quando te foste embora ficou mais complicada ainda, embora no início eu não tenha demonstrado isso. Vesti a minha capa de super-mulher forte e segura, e tentei mostrar a toda a gente que estava a lidar bem com a situação. Mas depois de tanto representar, ficou um enorme vazio…O vazio da falta de afecto, o vazio da hipocrisia, e da vida a preto e branco.
Por isso comprei uma televisão enorme, de plasma, para a minha sala, com botões e funções que ainda hoje não sei para que servem. Acho que só tu sabes o significado deles, e acho que só tu me conseguias programar aquela maldita televisão como deve de ser. Para que eu voltasse a ver a vida com olhos de ver, para que as cores voltassem a brilhar, como os teus olhos brilhavam quando olhavam para mim. Mas eu sozinha não consigo regular as cores da porcaria da televisão. Acho que estão um bocado baças, como imagino os teus olhos agora…
Ou se calhar é do vidro que está um bocado sujo. Desculpas.
Acho que eu é que não ando mesmo a ver bem, sabes? Tenho de ir ao oftalmologista e comprar uns óculos novos. Eu sei que não gosto de usar óculos, e que vou gastar dinheiro nuns, mas tu sabes que lentes de contacto não posso usar. E agora até tenho usado os óculos, não é que goste, mas tem de ser, senão ando toda franzida. E depois fico com pés de galinha e envelhecimento precoce, e tenho de usar cremes para as rugas e fazer liftings e peelings. E depois também não quero ficar com a boca toda esticada e não poder rir.
Tu sabes que eu adoro rir. Rir, rir, rir, às bandeiras despregadas, até chorar e já não aguentar mais de dores na barriga. Há uns tempos que não me lembro de rir assim com vontade, não sei porquê. Deve estar relacionado com o facto de ainda não ter acertado com as cores da televisão…
Mas afinal de contas, só tu é que me poderias confirmar isso, porque sabes que eu e as máquinas temos aquela pequena incompatibilidade insanável.
Lembras-te quando eu explodi aquela máquina de café nova? Tu ficaste furioso e disseste que eu destruía tudo em que tocava. No outro dia dei por mim a lembrar-me disso, e da discussão que tivemos nesse dia. Tu disseste-me que destruía tudo em que tocava. É verdade? Será que eu destruo tudo em que toco? Não sei se sou eu que destruo, ou se simplesmente as coisas não dão certo para mim, o que sei é que, realmente não sou a mais sortuda das mulheres…
Há alturas em que penso que certas coisas são tão estúpidas, que só me acontecem a mim. Mas como todas as mulheres, sei que todas temos as nossas agruras, sem bem que umas mais do que outras.
Tenho um carro novo também, e é muito bonito. Tenho pena que não o possas ver porque sei que ias gostar. Para além de todas as comodidades que dispenso de descrever porque são intermináveis, tem uma coisa que eu adoro particularmente, que é a ligação ao ipod e o comando no volante. Agora já posso andar a ouvir a minha música aos gritos, sem aquele barulho horrível das colunas que pareciam duzentos sacos de plástico a resmalhar ao mesmo tempo.
Naqueles dias em que só me apetece gritar, entro nele, abro os vidros, ponho a música bem alta e canto a plenos pulmões, até me doer o peito e custar a respirar.
Muitas vezes vou à praia e fico a olhar o mar. Sento-me na areia e fico ali a divagar em pensamentos, a ver o sol a pôr-se, e a pensar que o dia seguinte vai ser melhor. E mal ou bem, acaba por ser. Fico mais calma, mais leve…Sacudo a areia da roupa e dos sapatos para não sujar o carro. Sim, porque carro novo é outra coisa.
Estou a pensar continuar a estudar fora de Portugal, fazer mais uma pós-graduação talvez. Estudar, evoluir, crescer, amadurecer, alargar horizontes. Acho que vai ser bom para mim. Afastar-me um bocado, começar de novo…É que às vezes sinto-me um pouco asfixiada…Assim com vontade de ganhar asas e voar, sair daqui, desaparecer. Mas por outro lado, os laços são cada vez mais difíceis de cortar, e sinto-me presa.
Sabes explicar-me isto? Esta vontade grande de partir, e as pernas que não me obedecem e paralisam-me para ficar? Ou será a cabeça? Ou o coração?
Bem, olha, já não sei, nem tenho a certeza de nada.
A única certeza que tenho, são as resmas de papéis em cima da secretária, à espera de dias melhores em que a minha paciência e concentração me permitam olhar para eles, a certeza dos problemas que tenho de solucionar, e as tarefas diárias escritas num post-it fluorescente que nunca chegam a ser totalmente cumpridas, e são sempre adiadas para o dia seguinte.
Disso eu tenho a certeza.
Tenho a certeza que de manhã me vai continuar a custar muito a acordar, mesmo que seja tarde, e que à noite vou continuar a não ter sono. Tenho a certeza que vou continuar a adorar passear, ir à praia, rir, brincar e fazer disparates.
Tenho a certeza que vou continuar a adorar pizzas, hambúrgueres, e toda a comida de plástico, apesar dos avisos contínuos da ameaça cardiovascular. Tenho a certeza que vou continuar a adorar ver filmes nos domingos chuvosos de Inverno, tapada com uma manta no sofá, com a minha gata em cima das pernas e as chamas a crepitarem na lareira. A certeza que sempre vou adorar ler livros e escrever. A certeza que vou continuar a gostar de fazer compras e experimentar roupas.
Tenho a certeza que vou continuar a ter as minhas dúvidas existenciais, as minhas paranóias, receios e inseguranças. De que choro quando é preciso, e não tenho vergonha disso. De que rio sem parar, mesmo quando às vezes estou triste. De que grito e digo palavrões no trânsito como um verdadeiro carroceiro. De que tenho mau feitio, sou resmungona, stressada, e digo tudo como os malucos quando me passo da cabeça. De que tenho alguém com quem posso contar, ouve todas as minhas baboseiras e me limpa as lágrimas.
A certeza de que tenho saudades tuas e de estar contigo.
De andarmos juntos no baloiço do parque e entre risos, desafiar a gravidade.
Estas e outras, são as únicas certezas que tenho. Mas isso agora também não interessa nada, porque quem é que precisa de certezas, quando pode ter dúvidas??
Só sei que nada sei, bem dizia o outro…
E se calhar, até tinha razão.
Rita
Texto registado no IGAC

domingo, 22 de novembro de 2009

A Máscara


Esta manhã não conseguia sair da cama. Foi como se uma força invisível me puxasse para debaixo dos lençóis e me dissesse que este dia-a-dia alucinante não adianta de nada e que portanto, melhor seria ficar na cama. Tentei lutar contra esta falta de ânimo que me esmaga, arranjei coragem e forças não sei onde, para me agarrar a ideias positivas, e levei o meu dia de trabalho para a frente sem pestanejar.
O Francisco mandou-me um e-mail a perguntar como eu estava, porque me tinha visto chegar com uma cara péssima. Respondi-lhe que andava com excesso de trabalho e preocupações, e que tinha dormido mal, mas que não era nada de mais. Ele perguntou – me se era mesmo só isso, e eu confirmei que sim. É um querido o Francisco, às vezes até parece que se preocupa comigo a sério, mesmo sem termos grande nível de intimidade. De vez em quando vamos beber café lá fora, eu, ele e a Matilde que é uma colega dos Recursos Humanos que eu gosto muito, e falamos sobre montes de coisas, menos do trabalho aqui no jornal. O Francisco é um fixe e tem o dom de me fazer rir, mesmo quando estou triste. Está sempre a contar piadas e a gracejar sobre tudo, tem um sentido de humor impressionante e contagiante. A Matilde também é uma querida, e quando estou mais em baixo, ligo-lhes para irmos beber café, e falamos de tudo e de nada ao mesmo tempo. De tudo, porque falamos de tudo mesmo, como actualidade, coisas de família, amigos, etc. E de nada, porque nem eu nem eles sabemos, qual é o nosso verdadeiro e real estado de espírito.
É triste, mas hoje em dia, noventa e nove por cento das pessoas usa uma máscara tão impenetrável, que ninguém consegue saber genuinamente, o que é que os outros estão a pensar ou a sentir, se estão contentes, ou tristes. Porque é que as pessoas fazem isto? É para se protegerem? Para não darem parte de fracas? Mas porquê, se toda a gente já sabe o que é chorar e sofrer, seja por perder alguém que se ama, seja porque a vida não nos corre bem, seja por solidão? Cada um de nós que se esconde diariamente por trás dessa máscara, já experimentou esse tipo de sentimentos. Então, porque é que os continuamos a esconder com tanto pudor como se tratasse de uma nudez obscena em público? Não entendo, sinceramente, não entendo, e muito menos porque também eu alinho neste teatro, e todos os dias visto a minha máscara para ir trabalhar, como se fosse mais um casaco ou um par de brincos. Mas enquanto esses são visíveis e se eu os tirar nota-se, a máscara é totalmente invisível, e ninguém sabe se eu a estou a usar ou não. Por isso, é tão difícil hoje em dia confiar nas pessoas, porque nunca sabemos se elas estão a ser totalmente verdadeiras ou se afinal, têm a máscara posta.
Se não existissem estas máscaras, o Mundo seria bem mais fácil e eu não teria que pôr litros de corrector de olheiras para conseguir ir trabalhar, sem pensarem que eu sou uma criatura tirada do Aliens, e quando o Francisco me perguntasse se eu estava triste, eu não iria vestir a máscara, e iria responder-lhe simplesmente que estou muito triste e infeliz, porque discuti com o Miguel e ele saiu de casa, porque tomei três Xanax, e dormi no chão da cozinha envolta em lágrimas, ao frio e abandonada .
Aí, ele também iria tirar a sua máscara e contar-me que também anda muito triste porque a mãe dele tem cancro, e está no hospital a fazer tratamentos, e os médicos já não têm esperança, mas só ele é que sabe, nem o pai dele suspeita. E assim, ele já poderia tirar a máscara em frente ao pai e contar-lhe que a mãe está a morrer, e se calhar só tem mais uns dias de vida. E o pai ia chorar de certeza, agarrar-se a ele e dar murros nas paredes, mas ia ajudar a mulher, sabendo de antemão que ela não vai viver muito mais. E que adianta esta mentira, se ele vai acabar por sofrer à mesma quando a mãe morrer?
A Matilde também tiraria a sua máscara e contaria que o marido a traiu com uma brasileira que trabalha ali nos frangos de Moscavide e agora se vê a braços com um T3 em Telheiras para pagar e dois filhos de cinco e oito anos de idade, e despesas que não acabam mais. E só mesmo por isso é que ela não se separa do desgraçado. Por isso e por o amar acima de tudo, mesmo que ele seja um traste da pior espécie. E aí estaríamos os três e toda a gente, nus como viemos ao Mundo, mas poderíamo-nos ajudar mutuamente, sabendo das desgraças da vida de cada um.
Eu aconselharia a Matilde a vender a casa e a ir morar com os pais, o Francisco a contar ao pai que a mãe tem cancro, e dar-lhe ia força para enfrentar este pesadelo que ele está a viver. A Matilde dir-me-ia para tentar compor as coisas com o Miguel, e o Francisco certamente me passaria a mão pela cabeça e me diria que ele não era homem para mim, e que eu merecia muito melhor.
Agora assim…Assim, não podemos fazer nada senão fingir que temos vidas perfeitas e fingir que acreditamos que os outros também as têm.
Porque todos sabemos que todos sofremos, temos problemas, chatices, discussões, todos choramos por amor, por incompreensão, fúria e raiva às vezes. Isso não é nenhum crime de pena capital, não é nenhum sinal de fraqueza, muito pelo contrário. Então se assim o é, para que é que andamos aqui todos a representar felizes e contentes, a vida que gostaríamos de ter? A vida não é aquilo que gostaríamos que ela fosse, mas apenas aquilo que é, por isso de nada vale andar aqui a fingir que temos dia-a-dias perfeitos e cor-de-rosa em que tudo é feliz, e alegre e os problemas não nos afectam. Somos humanos, somos de carne e osso, e ferimo-nos diariamente, por isso para quê fingir?
Será que sou só eu que penso este tipo de coisas, ou estes pensamentos são comuns e recorrentes para toda a gente? Porque é que ninguém dá a conhecer a sua verdadeira cara? Por medo de quê? Eu sempre fui ensinada a ser verdadeira e genuína, a gritar se tenho vontade, a chorar se me apetece e a não esconder nada. Mas a partir de uma certa idade, comecei a perceber que não era assim que as coisas funcionavam no mundo real, e deixei de lado essa minha postura. A partir daí tentei tornar-me uma pessoa um pouco mais fria, mais racional e menos autêntica, em nome de uma regra que a sociedade ou mesmo eu, já nem sei bem, me impôs, em prol também não sei bem do quê. Sei que é assim, mas limito-me a agir de acordo com isso, sem saber porque é que é assim. Um dia, algum gajo maluco deve ter espalhado numa carta corrente ou num e-mail desses que correm Mundo, que dava azar demonstrar aos outros os nossos próprios sentimentos e desnudar as nossas fragilidades e inseguranças, e começou a ser prática corrente ocultar as nossas amarguras e tristezas, na vã ilusão de que isso nos torna mais fortes. Mas é mentira, pois só nos torna mais fracos e incapazes de lidar com esses sentimentos, de os assumirmos perante os outros, e sobretudo perante nós mesmos.
Porque às vezes passamos tanto tempo com a máscara, que acabamos nós próprios por acreditar nas tristes mentiras que contamos aos outros.


Rita


Texto registado no IGAC

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Amor pela Boca



Vou fazer um jantar especial em minha casa e convidar alguns amigos e aquele alguém especial. Mas o que é que eu vou cozinhar? Tem de ser uma coisa elaborada e sofisticada, que eu não vou convidar o pessoal e depois servir bifinhos com natas e cogumelos! Tem de ser uma coisa em grande!
Decido começar a investigar bibliografia sobre culinária, e é com essa ideia em mente que me dirijo a uma enorme livraria no Saldanha. Chego lá com uma energia fora do normal, e decido embrenhar-me nos livros. Adoro livrarias. É um espaço amplo e iluminado, mas não em excesso. As paredes estão forradas de livros, desde o chão até ao tecto, e tudo está organizado e dividido por temas: Actualidade, Arquitectura, Design, Direito, Economia, Esoterismo, Política, etc. Cheira a papel novo, a letras, e a livros por abrir. Simplesmente delicio-me com este cheiro, e sinto que podia passar a minha vida toda aqui, ou pelo menos, uma parte significativa dela. Tudo está decorado em tons sóbrios de castanho e preto, com estantes em madeira, e existem diversos sofás de couro preto espalhados pelas diferentes secções. Uma empregada de meia-idade, com carrapito vermelho, óculos de massa pretos, e uniforme cinzento dirige-se a mim com um ar austero. Parece uma governanta daquelas mansões fantasma, ou então uma directora de um colégio interno. Sorrio-lhe, um pouco intimidada, e pergunto onde é que fica a secção de culinária.
Ela aponta-me com um sorriso um bocado altivo, um canto ao fundo da loja, e eu avanço a passos largos e confiantes nessa direcção, com a sensação de que algo vai mudar na minha vida em curto espaço de tempo. Se calhar ela devia pensar que eu ia pedir um livro de economia ou de política. Agora deve estar a achar que sou uma doméstica básica. Bem, não quero saber, era o que mais faltava estar-me a preocupar com o que pensa uma empregadazeca de balcão com carrapito vermelho.
Descubro com espanto que existe vasta bibliografia sobre culinária, pois centenas de livros apelativos se encontram nesta secção, desde cozinha italiana, japonesa, oriental, africana, indonésia, australiana, portuguesa, essa não que já conheço, até livros sobre cozinha de fusão e de moléculas, com tubos de ensaio na capa, e minhocas azuis e verdes fluorescentes que mais parecem saídas de um filme de ficção científica. Isto é que já é demais para mim, custa-me a aceitar que a comida se faça com fórmulas matemáticas e em tubos de ensaio, em vez de ser nos tachos e panelas e no tão tradicional forno a lenha. Isso para mim não é comida, é um atentado. Mais valia fazerem um comprimido que substitua todas as necessidades nutricionais diárias, assim já ninguém precisava de comer, nem de sujar louça. Era bom para os solteiros, que têm preguiça de cozinhar. Um comprimido ainda vá, agora chamar cozinhar a deitar uns pós e líquidos dentro de tubos de ensaio, esperar que aquilo deite fumo e agitar numa máquina que parece de análises sanguíneas, é muita ficção científica para mim. Logo eu, que odeio a Guerra das Estrelas. Bem, mas vou esquecer estes atentados gastronómicos que não são o que eu estou à procura. Percorro as estantes com o olhar, e sinto-me em casa. A livraria está deserta, só está um senhor na secção de Economia, sentado num dos sofás de couro preto, com o olhar perdido em livros muito chatos, cheios de números e teorias sobre a macroeconomia, e sem desenhos, nem cores.
Tenho de que dar uma vista de olhos geral e optimizar as minhas decisões, pois com os meus recursos orçamentais só vou poder levar um livro, por isso tem de ser um mesmo bom e completo, com receitas maravilhosas, sofisticadas, fáceis de fazer, e tem que ser barato. Bem, sou mesmo exigente.
Um livro com deliciosas iguarias na capa, e com fotografias apelativas chama-me a atenção. É um livro de cozinha indiana de uma senhora hindu que me deixa completamente louca. Chama-se «Amor pela Boca». Sinto uma emoção tão forte, que sei que tenho de comprar aquele livro, pois algo me diz que ele é o instrumento essencial e indispensável para a minha felicidade neste momento! Perfeito, na contra-capa para além de descrever e originalidade e beleza da comida indiana, ressalta também o seu poderoso efeito afrodisíaco! Lindo!
Abraço-me instintivamente ao livro com gratidão e reconhecimento, como se ele fosse o meu novo e melhor amigo, e dirijo-me à caixa para pagar, tão feliz, que parece que vou a flutuar em cima de nuvens. Olho para a página inicial do livro e procuro descortinar o preço. Cento e dez euros? Um livro? Ainda por cima de culinária? Estarei a ver bem? Compreendo agora porque é que Portugal tem a taxa mais reduzida da Europa de venda de livros.
Decido que aquele livro tem de ser meu, custe o que custar, aliás tenho a íntima convicção de que ele foi escrito a pensar em mim. Contudo, a miséria franciscana em que me encontro deixa-me inquieta, porque já estamos no fim do mês e ainda não recebi, e tenho o dinheirinho todo contado para as minhas despesas. O que vou fazer?
Volto para trás para ver se não há uma versão mais reduzida e económica do dito livro, assim tipo de bolso ou qualquer coisa semelhante. Pode sempre haver um livro de bolso de comida indiana, não é?
Após apurada análise de tudo o que está ali naquela maldita secção de culinária, concluo que os livros são todos caríssimos e excedem largamente as forças do meu orçamento.
O único que poderia comprar chama-se «Cozinha para principiantes», tem uma capa muito feia, amarela, com uns legumes, e só ensina a fazer arroz branco, ovo estrelados e peixe cozido.
Penso que é melhor comprar o livro indiano no princípio do mês. Porém, nada me impede de passar uma ou duas receitazinhas para me ir entretendo a praticar, antes de comprar o bendito livro, e assim posso fazer o jantar à mesma! Sinto-me muito envergonhada ao tirar da mala o meu conjunto de bloco e caneta da Agatha Ruiz de la Prada, mas sei que é por uma boa causa, porque afinal de contas, os meus propósitos são extremamente louváveis.
Olho em redor e a livraria está deserta. Começo a passar as receitas a uma velocidade supersónica, como se as minhas mãos estivessem ligadas à corrente eléctrica. Mas quando estou no melhor da festa, começo a ver dirigir-se a mim, com cara de poucos amigos, a funcionária-governanta da livraria. Os passos dela assemelham-se aos de um dragão enfurecido, e parece que vem a deitar labaredas e fumo pelas narinas. Tem os olhos de tal maneira fora das órbitas, que até saem dos grossos óculos de massa, e caminha pesadamente na minha direcção. Oiço os passos dela, nuns sapatos pretos de salto grosso, que ritmadamente, batem no chão de madeira da livraria, como tambores que anunciam a minha desgraça eminente. O cabelo vermelho, puxado para trás no carrapito, dá-lhe um ar terrivelmente demoníaco, como se me viesse me infligir um castigo violento. O monstro já viu o que eu estou a fazer.
Tenho vontade de fugir, mas não posso. Estou paralisada. Tenho o livro aberto, em cima dele o bloco, e na mão a caneta. Que mais provas são precisas para demonstrar o flagrante delito? Absolutamente nenhumas. Tento reagir mas estou dormente e tenho picadas nas mãos. Parece aqueles sonhos em que vamos a fugir de um monstro, mas não conseguimos correr, caímos, e o monstro acaba por nos apanhar com toda a facilidade.
Com a pressa, ao fechar o livro para a empregada-dragão não armar problemas, a caneta escorrega-me das mãos e faz um enorme risco preto, mesmo na página do frango com caril e arroz biryaani.
A empregada-dragão pergunta-me com péssimos modos, o que é que estou a fazer. Eu fico muda, sem saber o que lhe responder. Mas não é preciso, porque ela já me topou a léguas, e sabe perfeitamente o que é que eu estava a fazer. Diz-me com ar de superioridade e arrogância, com os óculos encavalitados na ponta do nariz, que não posso estar a passar as receitas, ou compro o livro ou me vou embora.
Uma onda de raiva e um sentimento de humilhação sobe por mim acima, tenho vontade de lhe perguntar quem é que ela pensa que é para estar a falar comigo daquela maneira. Porém continuo calada, pois sei que se dissesse isso ia ouvir o que não queria.
Sinto vontade de chorar quando ela me tira o livro das mãos, abre-o na página e vê o enorme risco de esferográfica preto, mesmo por cima da perna de frango. Esbugalha os olhos como se fosse um peixe a asfixiar, e diz-me que já que danifiquei o livro tenho de o levar. Tento disfarçar com um enorme rubor que me queima as faces, e digo-lhe que aquilo não é um risco, é apenas sujidade, e já estava assim. E, acto contínuo, esfrego o dedo por cima do risco, pedindo a Deus que o meu dedo tenha poderes mágicos para apagar a porcaria do risco. Mas nada. O risco continua ali, a olhar para mim.
A bruxa da empregada-dragão diz-me, com o dedo espetado em direcção à minha cara de pânico, que tenho de levar o livro, senão vai falar com o gerente.
As pessoas que entretanto entraram na livraria, começam a aperceber-se do que se está a passar, porque está tudo em silêncio a caminhar pelas prateleiras, e só se houve a voz da bruxa-dragão, a matraquear e a dizer que tenho de levar a merda do livro. E eu com vontade de lhe dizer que até queria levar o livro mas apenas no princípio do mês!
No entanto, percebo que não há alternativa, e decido levar o livro e enfiar a viola no saco, para não passar uma vergonha ainda maior.
A mulher-dragão com escamas verdes e labaredas a sair do nariz escolta-me até à caixa como se eu fosse uma criminosa em fuga. A vergonha é tanta, que sinto o chão a fugir debaixo dos pés, e uma lágrima assoma ao canto do olho. Limpo-a com violência e decido que vou ser forte: estendo o cartão multibanco à empregada da caixa, e rezo para ter dinheiro suficiente na conta e aquilo não começar a apitar, senão aí é que vai ser do pior.
Suspiro de alívio ao não ouvir nenhum apito, e ao ver o talão a sair lentamente da máquina. Saio cabisbaixa, e decido nunca mais voltar àquela livraria.
Rita
Texto registado no IGAC

sábado, 31 de outubro de 2009

A Penthouse


Quando tinha três anos detectaram-me um problema qualquer no coração. A minha mãe ao pôr-me a mão no peito, sentiu que o meu coração estava a bater muito depressa e num ritmo irregular, e achou estranho. Levou-me ao médico pediatra. Ele auscultou-me com o estetoscópio e franziu o sobrolho, e ali ficou a ouvir atentamente, em silêncio, com o estetoscópio de metal gelado, colado ao meu peito. Eu não me lembro disto, só tinha três anos, mas sei-o quase de cor, só de ouvir a minha mãe contar… A partir daí encaminhou-me para um cardiologista pediátrico, e seguiram-se dúzias de exames ao coração, com a tecnologia mais avançada da época, no consultório daquele que era o melhor cardiologista pediátrico do país. A minha mãe, coitada, tinha de juntar dinheiro o ano inteiro para eu poder ir à consulta anual, e fazer os respectivos exames de controlo.
Até hoje, não sei muito bem o que tive ou ainda tenho. Na altura, o cardiologista pediátrico supra-sumo, após dezenas de exames e de auscultações intermináveis com o odioso e frio estetoscópio no meu peito, diagnosticou-me um problema numa válvula. Supostamente, a referida válvula teria uma configuração anatómica diferente do habitual, com mais tecido, e numa forma diferente, e logo deixaria passar menos sangue do que o que devia, e por isso provocava-me maior cansaço. Por sua vez, também havia um ligeiro «click», que era audível à auscultação, e que deixava todos os médicos fascinados pelo meu coração, tentando descobrir que raio tinha eu dentro do peito, para fazer aquele barulhinho tão intrigante.
Mas mesmo eu, até hoje, também não sei responder o que tenho dentro do peito que faz esse barulhinho, por isso também nunca os pude ajudar a descobrir, qual a origem do click no meu coração.
O meu coração tem quartos, halls, jardins, piscinas, galerias de arte, moradias, apartamentos, e uma penthouse. É uma autêntica cidade. É um pequeno mundo, o meu pequeno-grande mundo. O Gabriel Garcia Marquez diz que o coração tem mais quartos que uma casa de putas, e eu concordo plenamente com ele. O meu coração tem pessoas, animais, lugares, flores, árvores, cores, histórias, livros, canções, recordações, cheiros e sensações.
Tu também estás lá, mas não quero falar muito disso. Posso apenas dizer que estás numa pequena casa térrea com jardim, arrendada, e o contrato está prestes a terminar, ou assim eu o espero. Por isso tens guia de marcha com ordem de saída, embora um pouco indefinida, dependendo da data em que o contrato de arrendamento da tua casinha termina. E isso eu também não sei…
No meu coração está a minha família, a minha mãe, pai, irmãos, à minha avó, o meu avô…Estão as tardes em que o meu avô me ia buscar à escola e íamos comer gelados, e ele me comprava presentes. E depois pedia, não contes nada à avó, senão ela diz que eu te estrago com mimos. E estragava mesmo, porque tudo o que eu pedia, o meu avô fazia, ou comprava, só para me ver feliz. Sem saber talvez, que só pelo amor dele, eu já era a menina mais feliz e amada do Mundo. O meu avô levava-me ao café e fazia o totoloto e o totobola enquanto punha o dedo na boca num grande schiuuuu e me pedia para não contar à avó. E dizia que ainda ia ser rico e ter uma sorte grande. E aí iríamos morar todos para uma grande casa com jardim, piscina e cães e gatos para eu brincar. Nesse dia da sorte grande ou da lotaria, íamos sair do nosso apartamento no terceiro andar de uma rua movimentada e cinzenta de Lisboa, e eu poderia finalmente aprender a andar de bicicleta sem medo de ser atropelada. E poderíamos correr à vontade, eu, o avô e a bola sem ser no Parque Municipal. Tudo isto dizia o avô enquanto sorria e flutuava em sonhos esfarrapados como bolas de algodão. O meu avô era um sonhador, e sempre alimentou os seus sonhos com a esperança de que um dia eles se fossem concretizar. A maneira como o avô falava, parecia fazer crer que aquilo ia mesmo acontecer, tal era a certeza e convicção que ele punha nas palavras e na forma como as dizia. De tal forma que eu sempre lhe perguntava, de cada vez que via mais um boletim do totoloto: é desta, avô? É desta que vamos ficar ricos? É filha, o avô tem a certeza que desta é que é mesmo, o avô tem uma grande fé nestes números. E eu ria, enquanto trincava um chupa-chupa, e pensava na boneca que ia pedir ao avô, quando o grande dia chegasse.
Mas esse dia nunca chegou. Mas penso também que o avô nunca desistiu que ele chegasse, até ao último dos seus dias. O avô era um jogador nato, e embora nunca tivesse causado prejuízos de maior à economia familiar, chegou a provocar alguns desequilíbrios orçamentais. Eram tempos muito difíceis, em que o dinheiro não abundava, e não existia a facilidade de acesso aos bens de consumo que existe hoje. As pessoas tinham pouco, e davam muito mais valor ao que tinham, tudo era motivo de alegria e orgulho, cada pequena migalha que se conquistava. Não é como hoje, em que as pessoas banalizam as coisas de tal forma que já não é concebível viver sem elas, mas também não lhe dão qualquer valor, precisamente porque são normais e toda a gente as tem.
O avô ia comigo apanhar musgo para pôr no presépio de Natal. E apanhávamos também pedras, e areia para fazer os caminhos, pelos quais os reis magos iam levar as oferendas ao Menino Jesus. O avô levava um canivetezinho suíço, que sempre o acompanhava, e tirava lascas perfeitas de musgo verde e sedoso das paredes, que levávamos para casa e regávamos com um borrifador para não secar, até ao Dia dos Reis, em que desmanchávamos tudo. Depois fazíamos a aldeia, cheia de caminhos, água, pontes, casas, e por fim, as figuras tradicionais do presépio. Ficava lindo, e para mim o presépio era mil vezes mais importante do que a árvore de Natal. Talvez porque adorava ir com o avô, cheia de casacos, gorro e cachecol, o ar gélido a sair da boca, e a fazer fumo, e o avô sempre a dizer, cuidado para a menina não se constipar, Maria, põe-lhe o cachecol e as luvas. E a avó sempre a enterrar-me o gorro na cabeça e a pôr-me o cachecol em cima da boca. E lá íamos nós para o campo de mãos dadas, o avô levava um saco para pôr o musgo, as pedrinhas e a areia, e eu levava a alegria dentro do peito, porque ia fazer o presépio com o meu avô.
O avô tem a penthouse maior, mais luxuosa e confortável do meu coração, com usufruto vitalício. Embora na vida dele, o grande dia em que ia ganhar um prémio milionário e levar-nos a todos para uma casa linda e grande nunca tivesse chegado, eu dei-lhe de presente, o canto mais especial e bonito do meu coração. Onde ele irá habitar para todo o sempre. O avô aí está, nesse cantinho único do meu coração, e nunca de lá vai sair. Às vezes, parece que até o oiço rir dentro do meu peito. Entristece-me saber que ele não me viu crescer, não me viu entrar para a faculdade, acompanhou nos últimos anos da vida dele a fase pior da minha vida, em que eu era uma adolescente revoltada, e ele um velhinho maravilhoso que me dava sempre razão, e me defendia perante tudo e todos, mesmo que eu estivesse a fazer a maior asneira do Mundo. Tenho pena que ele não visse a minha bênção das fitas, o meu primeiro emprego, e um dia não possa ver o meu casamento e os meus filhos.
A vida é muito injusta mesmo, porque me levaste o meu avô tão cedo? Fazes-me tanta falta avô, tu que foste mais que meu pai, tu que me criaste, embalaste, contaste histórias, viste nascer os meus primeiros dentes, me levaste ao médico nas noites febris, aturaste as minhas birras, que me levaste à escola, me sentavas a teu colo, me ensinaste à jogar às cartas, ao dominó, ao xadrez, e a tudo o que era jogos. Avô, às vezes ainda falo contigo à noite, e te peço ajuda para as decisões mais difíceis, será que tu me ouves? Onde tu estás, consegues ver-nos, tens saudades nossas? Avô, eu nunca te esqueço, nunca, e tenho tantas saudades tuas! Às vezes rio-me sozinha a pensar se tu voltasses daí de onde estás há já quatorze anos, não havias de conhecer este mundo maluco. Agora há tanta coisa nova e diferente, que tu não ias acreditar: telemóveis, que são telefones pequeninos que toda a gente tem, e usa a todo o instante, deve ser para não nos sentirmos tão sozinhos, dão para telefonar e para mandar mensagens escritas, ver as pessoas com quem estamos a falar, tirar fotografias, etc. Há uma coisa muito gira, que te tinha dado muito jeito no teu tempo, que é o GPS, que funciona através de um satélite, e dá para ver qual é o sítio onde te encontras. E se estiveres perdido, ele diz-te qual o caminho certo para onde tens que ir, e mesmo se te enganares, ele ajuda-te a chegar lá. Se houvesse GPS no teu tempo avô, a avó de certeza que te tinha comprado um, para te ajudar a encontrar o caminho certo para saíres do jogo, e não voltares lá mais. Mas paciência, avô. A vida é mesmo assim….
Hoje em dia, os computadores também fazem coisas incríveis, não estás bem a ver, e eu também nem te sei explicar, porque para mim, tudo isto são banalidades. E sei que se tu visses isto tudo, com os teus olhos enormes e curiosos, não ias acreditar, e ias pôr a cabeça entre as mãos, e sentar-te no sofá, como tu fazias quando não sabias o que dizer, e estavas impressionado com alguma coisa.
Mas voltando ao coração, depois de tantos anos, os médicos ainda não sabem bem o que é que eu tenho afinal. Há uns anos num exame de rotina, um médico viu um fluxo de sangue estranho e disse-me que podia ser um canal aberto, e se fosse isso teria que ser operada. Pensei que estava a sonhar, caiu-me tudo ao chão. Então passados tantos anos, ninguém viu que este suposto canal estava aberto? Agora com esta idade é que me vão operar? Seguiram-se mais dezenas e centenas de exames, desta feita, mais sofisticados e caros ainda, que a saúde em Portugal está pela hora da morte, e só com cunhas é que uma pessoa se safa, e mais uma vez todos os médicos fascinados pelo click do meu coração, que ainda ninguém conseguiu descobrir de onde vem, nem mesmo eu, que poderia ter uma explicação menos técnica, e mais emocional para ele, mas nem mesmo eu sei….Depois de ouvir muitas opiniões diferentes, e nada conclusivas, regressei ao meu cardiologista de infância, que quase não me reconheceu, pois já tinham passado muitos anos. E mais uma vez, o estetoscópio no meu peito, e mais uma vez, o sorriso dele a dizer baixinho, este click. E eu só pensava, oh doutor, eu não quero saber do click, doutor eu nem sequer o oiço, e sinto-me bem, doutor, eu até faço exercício, eu até consigo correr para apanhar o metro de manhã, doutor, não deve ser nada de mal, senão eu tinha de ter alguns sintomas. Eu não quero saber do click, a menos que o doutor me diga que este barulho é alguma coisa de mal. Se calhar por causa desse maldito é que eu ainda não encontrei o caminho da felicidade, e me sinto sozinha, mesmo quando estou rodeada de pessoas que me dão atenção e carinho. Será por causa dele que há dias que tenho o coração apertado e esmigalhado, e pareço carregar o Mundo nas costas e as desgraças dos pobres, fracos e oprimidos, todas no meu peito, doutor?
Queria ter tranquilidade comigo mesma, conhecer-me, aceitar-me, sentir-me bem como sou, parar de ser ansiosa e querer controlar tudo, querer antecipar reacções antes das atitudes que as desencadeiam, querer interromper e alterar o curso natural das coisas e acontecimentos, só porque é aquilo que eu acho mais correcto, deixar de ser insegura…Será que isto tudo, é por causa do click, doutor?
Será que é por causa do click que o meu coração vive encolhido, e que eu não consigo esquecer o passado?
Tem sido o click misterioso que tem destruído a minha vida amorosa, doutor? É por causa dele que até hoje o meu coração anda doente, não tem um dono em condições, que goste dele, que o estime e o ame para todo o sempre, a sério, com corpo e alma?
Mas as palavras não saem, e eu perco-me em pensamentos tristes, enquanto sinto o estetoscópio gelado no peito. Mas já nem me importo, de tão familiar que me é a sensação. E para o doutor também, que fecha os olhos, concentrado, a ouvir as batidas irregulares e descompassadas do meu coração, enquanto esboça um leve sorriso. E nesse momento, eu tive a certeza, que com este estetoscópio tão moderno, também ele conseguia ouvir, não só o click do meu coração, mas por detrás dele, o riso alegre do avô que me acena da janela da penthouse no meu peito.
Rita
Texto registado no IGAC

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Cheiro a Amor




Escrevi-te uma carta à moda antiga, cheia de letras redondas e tristes, num papel bonito, com cheiro a amor. Ficaste surpreso, indeciso, hesitante. Posso até arriscar, estupefacto? Mas porquê tanto espanto? Com o conteúdo ou com a forma? Duvido que seja pelo conteúdo, pois já te expus o que sinto muitas vezes… Assim sendo, só pode ser pela forma.
Sim, eu continuo a escrever manualmente e em papel. Qual o problema, podes-me dizer? Tu sabes que eu não gosto de máquinas e um computador é muito mais impessoal, pelo que só recorro a ele quando é mesmo necessário. E além do mais, com estes vírus e bichos esquisitos que andam por aí, arriscava-me a perder tudo. Para isso é que existem os backups, dir-me-ias tu com o teu ar paternalista, explicando em seguida que backups são cópias de segurança dos ficheiros que temos, para evitar perder coisas importantes.
Pena que eu não fiz um backup de ti…se calhar a esta hora ainda te tinha, algures guardado num cd, numa pen, ou até no meu ipod. Se eu tivesse feito uma cópia de segurança de ti, as coisas eram diferentes, tenho a certeza.
As lâmpadas da dispensa não estavam fundidas há três meses, e eu não me irritava tanto e gritava sozinha com o computador e com a impressora quando eles me dão chatices.
Não reclamaria sozinha no carro, do meu chefe, dos colegas, das inquietações, do cansaço e do excesso de trabalho pois ligaria para ti e correria para os teus braços, e tu far-me-ias rir e esquecer tudo isso.
E lá estarias tu, meu porto de abrigo, para me passar a mão pela cabeça e solucionares os meus problemas num passe de mágica, para me dizeres para ter calma e que tudo era simples.
Mas chego à conclusão que a vida não é nada simples. As coisas não são simples, por mais que as pessoas as tentem fazer parecer. As pessoas, essas, são as que menos simples são. A minha avó diz, e tem toda a razão, que viver não custa, custa é saber viver.
Porque apesar de as coisas já não serem simples em si mesmas, nós tornamo-las mais complicadas ainda. Passamos a vida inteira a lutar por algo ou por alguém, e sonhamos com esse objectivo inatingível, mas quando finalmente conseguimos, deitamos tudo a perder, seja por estupidez, orgulho, burrice ou outra paragem de cérebro qualquer. Só damos valor às coisas em duas situações: ou quando simplesmente não as temos, o que é problemático, ou quando as perdemos, o que é pior ainda, porque nos cria aquela sensação de um punhado de areia que se escapa por entre os dedos. A felicidade é assim…fugaz e efémera.
É um conceito tão perfeito que não pode ser um estado contínuo. Felicidade pressupõe a ausência de tristezas, mágoas, ressentimentos, agruras de todo o tipo e espécie. Ora isso é tecnicamente impossível, porque as vidas perfeitas não se vendem em pacotinhos cor-de-rosa com cheiro, com uma pastilha de morango como brinde.
As vidas perfeitas não existem, assim como a felicidade plena é um mito.
Todos nós temos os nossos momentos de felicidade, é certo. Aqueles em que tudo fica às bolinhas azuis e roxas, em que nos sentimos leves, amados, desejados, com sorte na vida, no amor e no jogo. Que temos força para lutar contra o Mundo se for preciso, que nada de mal nos vai acontecer. Que somos lindos e deslumbrantes, e não há melhor que nós.
Mas infelizmente, não passam disso mesmo: de momentos.

Porque a seguir vem logo algo que ensombra a nossa felicidade e nos faz aterrar com os pés no chão a toda a velocidade, tipo carta do Ministério das Finanças. E ver que a vida afinal, só é colorida às vezes. E que não existem apenas cartas de amor.

Rita



Texto registado no IGAC

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Os teus cabelos




De há uns dias para cá tenho sonhado todas as noites contigo.
Vejo-te na casa de banho, de secador em punho, com os teus longos cabelos cor de mel que te caem em canudos pelas costas. Vejo-te a desenhar o olhar com o teu característico eyeliner preto, milimetricamente paralelo às pestanas, e os teus profundos olhos castanhos a sorrir para mim. Lembro-me quando saías do duche e te enrolavas na toalha, enquanto secavas o cabelo e te maquilhavas. E eu ficava assim, a olhar para ti e a pensar como podias ser tão perfeita. Não me esqueço do cheiro a frutos silvestres do teu cabelo, e no outro dia dei por mim a procurá-lo na almofada que deixaste lá em casa. Mas não deixaste nem um cabelo cor de mel nessa almofada, que me permitisse reaver nem que fosse por breves instantes o teu cheiro. Lembro-me da tua boca cheia e bem delineada a lápis, como uma pintura, e do teu sorriso aberto. Mas tudo isso agora passou, e a vida é bem diferente.
Já não há cheiro a frutos silvestres, nem roupa passada a ferro e arrumada dentro das gavetas a cheirar a alfazema. Nunca soube passar a ferro, o que é que tu queres? Cozinhar ainda vá que não vá, agora sabes que para cuidar da roupa eu nunca tive muito jeito, e a única vez que tentei estraguei-te uma camisola de caxemira que ficou tingida de verde, embora fosse originalmente branca. Sabia lá eu que não se podiam misturar cores? Agora é que parece que há um detergente qualquer que se pode misturar tudo lá para dentro da máquina ao molho e as roupas não se tingem mutuamente. Tenho de ver se compro isso para evitar mais desgraças, porque no outro dia já lixei mais três camisas só porque uma era azul escura, outra creme e outra branca. Tenho de ver se contrato uma empregada também, porque tenho chegado tarde a casa e não tenho paciência para fazer nada. Fico ali no sofá com o olhar perdido na televisão, e imagino quando depois de jantar nos enroscávamos no sofá e ficávamos ali à lareira e a fazer amor, perdidos no corpo um do outro. E depois levava-te para a cama e adormecia-te como se fosses um bebé. Lembro-me quando cozinhavas para mim e fazias pratos sofisticados e ali andavas pela cozinha, a pavonear-te de colher de pau na mão e avental posto, mas sexy como sempre.
Nada foi igual desde que te foste embora. Continuo a ver a tua boca, o teu sorriso, o cheiro do teu cabelo em cada mulher que passa. Mas não és tu, tu não estás comigo e cada vez te sinto mais distante, como se já tivessem passado muitos anos e nada saiba de ti. Imagino se terás alguém, se encontraste um grande amor, se casaste, se estás feliz. Espero não te encontrar com ninguém ao lado, num supermercado qualquer a empurrar um carrinho de bebé porque isso não vou aguentar. Nem isso, nem ver-te com outro, simplesmente porque ainda te sinto minha. Sei que já não és minha, sei que te perdi, mas se te serve de consolo, eu ainda sou teu.
No outro dia depois de beber uma garrafa de whisky com o Carlos no fim do trabalho, fui para o Casino de Lisboa. Se queres que te diga nem sei bem o que fui lá fazer, mas acho que fui testar a máxima do azar no amor, sorte no jogo.
Cheguei lá e aquilo estava cheio de gente. Gente bonita, bem-vestida, um ambiente agradável. Mulheres bonitas então, nem se fala. Já não estava nada bem e fiquei ali um tempo nas slot machines mas comecei-me a sentir mal, porque aquilo é jogo para putos. Então decidi ir para a roleta. Nos primeiros jogos ainda ganhei algum dinheiro, mas depois foi tudo por água abaixo e perdi o que tinha apostado e ainda mais algum.
Fiquei mesmo lixado pá, já não basta tudo o resto ainda fui lá perder dinheiro. Foi então que se aproximou de mim uma mulher com cabelos cor de mel como os teus, que lhe caiam pelas costas como os teus, mas não cheirava a frutos silvestres, apenas a um perfume barato. Também não se pode ter tudo. A boca era carnuda como a tua, e os olhos castanhos amendoados, mas não estavam maquilhados como os teus.
Gostava ainda de saber se dizem que o amor é cego, porque é que eu te vejo em cada mulher que conheço e caio sempre na tentação de fazer comparações. Conversa puxa conversa, ela também já estava com um grão na asa e fomos acabar no Ibis.
Quando lhe tirei a roupa, percebi que de ti ela não tinha nada, e era como se não conhecesse aquele corpo, porque de facto não conhecia mesmo. E só procurava no corpo dela apenas um reflexo, uma sombra do que era o teu quando se colava ao meu e ficávamos ali entrelaçados, os teus gemidos no meu ouvido, e a minha língua no teu pescoço.
Mas nada disso se passou, e tudo aconteceu de forma fria e mecânica como já seria de esperar entre duas pessoas que se conheceram há um par de horas. E ela não cheirava como tu, não sabia como tu, nem tão pouco beijava como tu que me conseguias deixar perdido na tua boca, sem saber onde estava. Em vez disso, fiz com que tudo acabasse depressa como se tivesse urgência de sair dali e ir para casa tentar resgatar-te num sítio qualquer, talvez numa camisola esquecida numa gaveta, talvez num blush ou num baton caído entre as almofadas do sofá, qualquer coisa que me traga à memória o teu cheiro, o teu sabor.
Mas depois do turbilhão de pensamentos em que estava mergulhado só conseguia recordar aqueles momentos em que depois de fazermos amor te adormecia, e ouvia o teu respirar e os teus cabelos cor de mel espalhados sobre o meu peito.
Mas ela não se deitou no meu peito, virou-se de costas e adormeceu. O respirar dela era pesado e ofegante. Não era como o teu, leve e tranquilo, mal se percebia no silêncio da noite.
Depois adormeci, com um vazio imenso dentro de mim e com o whisky a latejar-me na cabeça, sem forças para me levantar e ir para casa. Acordei passadas umas horas, mal-disposto, suado e com a boca a saber a cortiça. Levantei-me e vi que ela se tinha ido embora sem sequer deixar um bilhete. Ainda bem, os tempos já não são o que eram, porque dantes quem fazia isto eram os homens e não as mulheres. Mas ainda bem que foi assim, poupou-me esse trabalho. Depois de sair do duche vesti-me e vi que o meu relógio que tinha posto em cima da mesinha de cabeceira tinha desaparecido. Sim, aquela imitação perfeita da Rolex que o Carlos me trouxe de Nova Iorque! Tu acreditas que a cabra me levou o relógio? Realmente, nunca pensei! Que ela não valia nada deu para ver, agora que também fosse ladra isso é que me surpreendeu. Quando vou para sair revolvi a carteira à procura do dinheiro para pagar o hotel e caiu-me tudo ao chão. A gaja ainda me levou os cem euros que tinha na carteira! Realmente que noite de merda, perdi dinheiro no casino, comi uma gaja do pior que ainda por cima me roubou dinheiro e o relógio! Isto o mundo está perdido, pois está, e eu também estou…
Penso que a puta da vida anda mesmo às avessas comigo porque tudo corre mal desde que me deixaste, e ando a dar em maluco. Mas isto vai passar e vou conseguir esquecer-te, não vou mais andar à tua procura em cada rosto que vejo na rua, e daqui a uns tempos nem me vou lembrar sequer do teu nome. E muito menos dos teus cabelos cor de mel.
Rita
Texto registado no IGAC

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A Lua das Caraíbas


Debaixo de uma palmeira, com os ramos ondulando suavemente ao sabor do vento quente de uma ilha das Caraíbas sinto voltar o apelo da escrita. Tem surgido várias vezes, timidamente, espreitando pela porta entreaberta, e pedindo-me em murmúrios, licença para entrar. Tenho fechado a porta com determinação, porque neste momento tenho de me concentrar noutras coisas mais importantes e com prazos fantasmagóricos que me asfixiam, por isso não posso deixar-me levar por ele.
Mas agora, nesta noite cálida de Verão, (será Verão aqui, Primavera ou mesmo Inverno?) permito-lhe que entre devagarinho.
É que nas Caraíbas nunca faz frio, o máximo são tempestades tropicais como aquela que vislumbro lá ao fundo, em nuvens negras e espessas, por isso não sei avaliar bem que estação será agora.
Mas também não interessa. Aliás, aqui nada interessa, nada no sentido das preocupações habituais e rotineiras que temos na nossa vida normal do tipo horários, preocupações, afazeres, alimentação, deveres domésticos, profissionais e o diabo a quatro.
Tirei o relógio há uma semana, e confesso que apesar de ter uma vasta colecção deles, percebo agora que são totalmente inúteis. Isto porque aqui não há horários para nada, e eu que sou uma viciada no controle do tempo, consigo viver resignada com tal facto. Não imagino maior felicidade do que esta que agora experimento: comer quando tenho fome, dormir quando tenho sono, guiar-me pelo sol, pela chuva, pelo vento, pelo mar, entregar-me às doces ondas que rebentam na praia, rebolar-me na areia, apanhar conchas na praia e correr atrás das gaivotas. Era bom que a vida fosse simples e livre assim. Que eu pudesse abandonar o meu corpo ao ócio, à natureza, ao simples deleitar de um por do sol ou a um banho de mar no meio de uma chuvada tropical. Andar o ano inteiro de biquíni e ter sempre a pele dourada do sol. Nadar com esses seres maravilhosos que são os golfinhos. Desfrutar da vida e da natureza na sua plenitude.
Aqui há outro tempo. O tempo em que há tempo para tudo e os dias são intermináveis. Tempo para fazer o que queremos. Tempo para sonhar, para rir, para fazer de cada momento algo único e especial. Tempo para dar atenção às coisas e às pessoas. Falar com elas, olhá-las nos olhos. Tempo para olhar o céu.
Trouxe alguns livros mas não os abri. Trouxe vários documentos do trabalho para, pensava eu, aqui os ler com mais tranquilidade e concentração. Numa coisa não me enganei, aqui há certamente mais tranquilidade. Aqui respira-se tranquilidade sobre as suas diversas formas. Há poucas pessoas, e as que há não andam a correr dum lado para o outro, simplesmente se movem num torpor adocicado enquanto se abanam com um leque placidamente.
Os automóveis que vejo são antigos, coloridos e andam a 20 km/h, e é como se ninguém tivesse nada de urgente ou inadiável para fazer. Vejo sorrisos em todas as caras, apesar da pobreza, e oiço música nas ruas, sempre.
Outra coisa muito importante e que só no outro dia descobri, é que aqui a lua é mil vezes maior e mais luminosa, e as estrelas mais brilhantes e intensas. Não sei se isto é mesmo verdade, porque cientificamente é impossível, mas enquanto estava deitada na praia a olhar o céu, pareceu-me. E a verdade, afinal de contas, é somente aquilo em que nós acreditamos.
Mas depois de muito pensar, não me recordo da última vez que tive tempo para olhar o céu estrelado à noite com verdadeira atenção e contemplar a perfeição dos astros, por isso provavelmente lá o céu é igual, e eu é que ando de olhos vendados.
Isto porque a lua é a mesma no mundo inteiro. Para mim é indiferente, porque a Lua das Caraíbas será sempre especial. Se calhar, apenas porque tenho tempo para olhar para ela e apreciar a sua luz e beleza.
A paz que há aqui é tão grande que nos leva a pensar que este mundo é outro. Que aqui os valores e princípios são diferentes, e não há preocupações, nem obrigações nem chatices. Por isso nem sequer me lembrei que trazia aquelas tralhas na mala, e sinceramente mesmo que isso acontecesse, acho que não ia conspurcar este universo paralelo com elementos do outro mundo da normalidade.
O mundo da normalidade é frio, duro, stressante e anda sempre em rota de colisão com tudo e todos. Com as pessoas, principalmente. Vivemos numa ordem caótica de disciplina que nos faz levar o dia-a-dia como autómatos sem questionar se é mesmo isso que queremos para a nossa vida. Se queremos levar uma existência igual à dos demais sem experienciar novas emoções e sentidos. Aqui consigo reflectir sobre mim e sobre os outros com o distanciamento necessário para ter uma visão objectiva da vida, do mundo e das coisas. Isto porque me separam cerca de dez mil quilómetros do meu país e um imenso oceano azul de barreira contra a civilização.
Fiz amigos e conheci pessoas fantásticas, e de algumas, só no fim da viagem soube os nomes. Para quê nomes? Os nomes aqui são tão desnecessários como os relógios e os carros de último modelo. Todos conseguem chegar onde querem à mesma. E nem precisam de se cansar. E tenho para mim que são muito mais felizes.
Desde a minha adolescência que sempre disse que um dia fugiria para uma ilha das Caraíbas, montava um bar na praia e dizia adeus à civilização. Agora, cada vez mais quero fazer isso. Gostava de romper com a minha vida bonita, mas normal e cinzenta, e fazer dela uma tela com cores vibrantes e garridas, com o mar azul-turquesa, a areia branca, as palmeiras verdes e o tempo que nunca se esgota. Mas sobretudo com aquela lua que ilumina o céu, tão redonda e tão branca.
E hoje, que já regressei à normalidade, consegui tirar as teimas. A Lua das Caraíbas é mesmo diferente. Pelo menos para mim.

Rita
Texto registado no IGAC

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O Tempo Certo



Já tive um filho. Não o embalei, não lhe contei histórias, nem sequer o vi nascer, mas tive-o no meu ventre durante algum tempo.
Quando se é mãe, tem-se a sensação de que o universo conspira a nosso favor, que estamos protegidas por uma luz dourada divina, e que nada de mal nos pode acontecer. Sentimos que existe uma força cósmica desconhecida que nos protege e à nossa pequena semente de todo o mal que existe no mundo.
É como se todos os sentimentos negativos que andam por aí à solta, esbarrassem numa pequena, mas robusta redoma de vidro, onde estão as mães no seu perfeito estado de graça.
Mas essa sensação trata-se de uma mera ilusão porque as mães, casadas ou solteiras, são tão ou mais frágeis que os demais indivíduos, e estão igualmente sujeitas às vicissitudes da vida. Isso não muda porque carregamos um ser dentro de nós e porque temos a capacidade de dar a vida a alguém. Mas não deveria ser assim.
Eu acho que as mães deveriam beneficiar de um estatuto especial que lhes conferisse protecção contra o azar, a tristeza, a morte, a doença, as más atitudes e sentimentos baixos. Uma espécie de redoma blindada com alarme, segurança privada e detectores de coisas negativas. Porque uma mãe sente-se tão abençoada, viva e feliz que não concebe pensar sequer que o milagre que sente dentro de si não imuniza contra o sofrimento, e não equaciona que esse ser que carrega possa só ter importância para ela, e para mais ninguém. Por isso se torna frágil e indefesa.
Antes de os testes e ecografias confirmarem a existência de uma pequena semente no meu ventre, eu já sabia que era mãe. Apenas porque um dia acordei, e fiquei a olhar-me ao espelho atentamente, inspirando profunda e lentamente com a mão na minha barriga.
E aí soube, sem margem para dúvidas, que carregava um novo ser dentro de mim, que estava a crescer a cada dia que passava. É como se tivesse olhado ao espelho e visto o avesso de mim, da minha imagem. Ter um filho no ventre é algo que só uma mulher pode sentir, mas não explicar. Saber que se é mãe, é das coisas mais bonitas que a vida nos pode proporcionar.
Imagino como seria o meu filho, se seria menino ou menina, que nome teria escolhido, qual a cor dos seus olhos e cabelos, o desenho do seu sorriso, a perfeição dos seus traços. Imagino-o a correr, a rir e a brincar num parque qualquer, vejo-me a carregá-lo ao colo e a ensinar-lhe mil coisas.
Mas por falta de sorte, ou culpa do destino, essa pequena semente não chegou a crescer e a despertar para a vida. Se existisse a tal redoma de protecção, as coisas seriam bem diferentes, tenho a certeza. Eu e a minha pequena semente teríamos sido resguardadas de todo o mal e azar que existe no mundo, tudo teria corrido bem e a história teria tido um final feliz.
Mas agora, minha pequena semente, como não posso mudar o curso natural das coisas, prefiro acreditar que não era a tua altura de nascer, e que simplesmente esta vida, este espaço e tempo não te estavam destinados.
Há sempre um tempo certo para todas as coisas, e o teu não foi este. Quando chegar a altura exacta, sei que o Universo vai conspirar a nosso favor, e mesmo que não exista a tal redoma, tu vais conseguir desenvolver-te e crescer no meu ventre até irromperes por mim com a sede de conhecer o mundo, para eu te poder apresentar a vida que escolhi para te dar.
E aí nunca vais saber o que é o abandono nem a rejeição, e vais sentir-te a criatura mais amada de todas. Nunca irás pensar que foste um erro de percurso ou que a tua existência é um estorvo para alguém. Simplesmente porque serás a concretização de um desejo de dar vida, e a isso se chama pura felicidade.
Há tempo para plantar, e tempo para colher. Tempo para nascer e tempo para esperar.
O teu tempo não passou, não morreu, nem deixou de existir. Foi apenas adiado até chegar o tempo certo.

Rita

Texto registado no IGAC

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A Casa do Coração


Moras ainda no meu peito. Nele construíste uma casa aparentemente sólida, resistente à chuva, ao vento, aos furacões e fenómenos sísmicos. Já te tentei expulsar de todas as maneiras e feitios: à pedrada, aos pontapés, aos gritos, com explicações racionais e plausíveis, mas tem sido tudo em vão. Porque tu continuas lá, impassível, de pedra e cal, e recusas-te a sair.
Tenho pensado em mil estratagemas para te pôr fora deste sítio ao qual não pertences, mas nada tem funcionado. Antes de conseguires construir a casa à minha revelia, ergui uma muralha forte e robusta, composta das pedras das desilusões que pesam uma tonelada cada uma, e consegui ladear todo o meu coração com ela. E ele ficou assim, fortificado, impenetrável e inexpugnável, pelo menos era o que eu pensava na altura. Mas um dia, sem saber como nem porquê, apercebi-me que tu, qual David Copperfield, tinhas transposto a muralha que eu erigi com tanto cuidado. Revoltei-me, fiquei furiosa, perguntei-te que direito tinhas tu de estar a invadir uma propriedade privada. Mas o coração não é uma propriedade privada, respondeste, e aliás, foste tu que me deixaste entrar.
Que ousadia! Mas decidi que não ias ser mais forte do que eu e do que a minha vontade. Por isso, durante meses reforcei a muralha, descobri pontos fracos, remendei os buraquinhos existentes nas pedras, mesmo que mínimos, fiz um belo isolamento à prova das decepções e do fracasso, que são piores que as infiltrações de humidade, e construi também um enorme fosso já do lado de dentro da muralha.
O fosso é muito fundo e tem águas lamacentas, opacas e frias, para dissuadir eventuais curiosos, que só queiram transpor a muralha e entrar na minha propriedade, apenas para ver o que lá existe dentro, mas sem querer construir qualquer casa sólida, nem investir em qualquer finalidade louvável.
O fosso tem crocodilos imaginários, simplesmente porque cá não consegui arranjar dos verdadeiros. Num país como o nosso é extremamente difícil arranjar um crocodilo, nem vos passa pela cabeça. Ainda tentei ir ao Jardim Zoológico ver o que é que se arranjava por lá, mas também fiquei um bocado desiludida porque os crocodilos que lá estão já não são apresentáveis e não metem medo a ninguém. São velhos e desdentados, parece que estão sempre a dormir e não têm energia senão para se arrastar de dentro para fora de água e comer.
Já nem há crocodilos como dantes, ou então só mesmo no National Geographic, daqueles que conseguem devorar um gnu e uma zebra em segundos, coitadinhos. Nunca gostei de ver estas cenas, e sempre me impressionaram muito, mas agora até reconheço o potencial dos crocodilos para afugentar criaturas indesejáveis.
Ainda pensei comprar daqueles crocodilos a fingir que são colchões para levar para a praia e têm umas pegas no dorso, incrustadas nas escamas, para a pessoa se agarrar. Mas conclui que não valia a pena. Desde logo porque a cor é extremamente artificial e não há crocodilo nenhum verde fluorescente, de olhos azuis e boca vermelha. Os crocodilos são todos verdes acinzentados e às vezes castanhos porque vivem cobertos de lama, e confundem-se com a paisagem, como os camaleões. Deve ser por isso, que uma vez no Senegal, eu me ia sentando em cima de um a pensar que era um banco de pedra, e só acordei com um grito a avisar-me de que aquilo era um crocodilo a sério.
Mas posta de parte a ideia de colocar crocodilos no fosso, arranjei uma dezena de pit-bulls e soltei-os na minha propriedade, só por precaução, pois para mim ninguém ia conseguir transpor aquela muralha, nem tão pouco conseguir nadar pelo fosso até à outra margem.
E assim andei uns tempos descansada, com a muralha reforçada, o fosso, e os pit bulls à solta com os dentes afiados.
Mas um destes dias, novamente me surpreendeste. Quando dei por mim, tinhas de um dia para o outro, construído uma casa no meu peito. Uma casa! Já não bastava estares lá, como ainda tiveste a desfaçatez de querer criar raízes e construíres sem pedir licença.
Em primeiro lugar, a casa é ilegal, porque tu não me pediste qualquer licença para construção, e que eu saiba a autoridade neste território ainda sou eu. Em segundo lugar, suspeito que a casa não cumpre certas normas do RGEU, pelo menos assim me parece, porque há sítios que não têm janelas, o que impede a luz, o sol e o ar de entrar. Mas para ti não deve fazer diferença, já que sempre quiseste viver na escuridão.
Em terceiro lugar, não te contentaste a fazer uma casa térrea, tiveste logo de construir uma casa com três pisos. Três pisos com aproveitamento da cobertura, com um jardim interior e pareceu-me até que tens uma pequena piscina atrás da casa. Mas isso ainda vou descobrir. Sempre tiveste a mania das grandezas. Pelos vistos planeias ficar muito tempo, para estares a investir desta maneira.

Mas estás bem enganado, porque eu vou demolir esta porcaria toda com uma retroescavadora, num forte acesso de raiva, e depois vou plantar cactos em todo o lado, que é para não deixar ninguém construir mais nada, e quem tiver a lata de tentar, vai espetar espinhos no corpo inteiro e sangrar.
Suspeito que não vai ser muito difícil demolir a casa porque na verdade, os alicerces estão podres. E quando a base de tudo está danificada, não há como sustentar uma construção, venha lá quem vier. Aliás era uma questão de tempo, ou de uma intempérie mais forte, até a casa começar a dar de si, e se espatifar toda no chão, num monte de pó e escombros, enchendo o meu peito de entulho desnecessário.
Tu argumentas que a casa foi bem construída, os alicerces estão em perfeito estado e que esta morada vai ser para a vida toda, porque foi o lugar que escolheste e não vais sair dele nunca.
Mas nem que eu tenha de chamar o primeiro-ministro para implodir isto tudo, garanto-te que não ficas aqui. Se ele conseguiu implodir aquelas torres gigantescas lá em Tróia, também há-de conseguir implodir a tua mísera casa com alicerces frágeis. Aliás, isso vai ser uma brincadeira de crianças.
Porque mais uma vez só pensas em ti. Eu também quero construir o meu palácio, algures aí num coração anónimo. Esse coração tem de ser especial, tem de me dizer alguma coisa. Tenho de me sentir lá bem e confortável, amada, desejada e protegida, por isso tem sido difícil encontrar a minha morada para começar a erigir o meu palácio. Ultimamente tenho andado a morar em tendas nómadas que improviso nos peitos alheios, até concluir que aquele lugar não é para mim. Optei por esta solução porque a tenda é muito mais fácil de desmanchar quando as coisas não correm bem. Desenterram-se as estacas, recolhe-se o pano e põe-se a trouxa às costas.
Mas estou farta de morar em tendas e quero construir o meu palácio. Só que primeiro tenho de limpar o meu coração de uma ponta à outra, por isso preciso que saias dele o quanto antes e leves a tua casa contigo. Enquanto não saíres eu vou continuar a levar uma vida nómada, sem raízes, dormindo em tendas e carregando todo esse peso às costas.
Vais ter de sair, dê lá por onde der, nem que eu tenha de intentar uma acção de despejo e recorrer à força, só mesmo para te meter medo.
Mas duvido que isso te assuste, porque tu até nunca tiveste medo de leis e tribunais.
Rita
Texto registado no IGAC

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Ser Feliz


A vida não é uma fórmula científica, uma equação matemática ou uma qualquer definição de dicionário.
Ela resume-se a uma série de factos, acontecimentos e histórias, descoordenados, incoerentes, desconexos, e aparentemente ilógicos e contraditórios. Mas no fim, tudo acaba por fazer sentido. Por isso é que a vida é bela. Por causa da sua imperfeição. O perfeito não existe, é uma ilusão, por isso é que a beleza da vida está na assimetria e na desordem das coisas e dos sentimentos. Nem tudo se explica racionalmente.
A vida é uma sucessão de caminhos, estradas, atalhos e becos sem saída. A virtude está em encontrarmos o trilho certo para a felicidade, nesta imensidão esmagadora do labirinto que é o Mundo.
Por isso, ser feliz é bem mais do que viver.
Vives uma existência cansada, monótona e cinzenta. Acordas de manhã, exausto, vazio, esgotado e perguntas-te porquê. Sabes exactamente como vai começar e acabar o teu dia. Tornaste-te um animal de rotinas, despido de emoções. O teu coração mantém um ritmo constante e organizado, como tudo o que fazes. Divides a tua vida metódica e ordenadamente, entre o trabalho, a casa, e as responsabilidades. Não tens tempo para ti. Não tens tempo para pensar. Vives assim, numa ordem artificial e criteriosa de horários e compromissos, que os outros e tu mesmo, criaste para ti e aceitas como a mais adequada e conveniente. Buscas um ideal naquilo que fazes. A felicidade? Pensas que sim, mas não. O conforto. A felicidade suprema é sentir que não se quer mais nada da vida, que já temos tudo o que ela tem para nos oferecer. E isso, é pela própria natureza das coisas, impossível, já que o ser humano é cronicamente insatisfeito.
Ser feliz é querer abraçar o Mundo e engoli-lo de um só fôlego, é acordar de manhã e olhar para cada dia não como uma sucessão de obrigações a cumprir, mas sim como se ele fosse o último das nossas vidas. E hoje em dia, isso é algo tão raro como um cometa que passa pela Terra. Todos nós vivemos existências que nós próprios e a sociedade nos impõem como sendo as mais correctas e as nossas de pertença. Mas eu recuso-me a isso.
Quero sentir-me viva. Quero desafiar a ordem natural das coisas. Quero adrenalina, risco, emoção, loucura e tudo aquilo que faz o nosso coração bater mais forte e povoa a nossa vida de cores mais vivas. O mundo não pode ser só a preto, branco e cinzento. Ele tem tanto mais para nos oferecer…
Tenho uma casa bonita, elegante, bem decorada. Tenho um armário cheio de roupas caras, perfumes, maquilhagem, jóias e relógios. Tenho um emprego relativamente bem pago, onde sou admirada e respeitada. Passo férias duas vezes por ano. Vou a bons restaurantes e aprecio bons vinhos. Tenho uma família que me ama, senão da maneira que eu gostaria, da maneira que cada indivíduo tem de amar outro: única. Tenho poucos amigos, mas muito bons, que adoro. Tenho livros, músicas, fotos e histórias que reconstroem a minha existência e a perpetuam para a posteridade. Tenho momentos de extrema alegria e de intensa tristeza. E pergunto-me a mim mesma: é só isto a felicidade? Não. Não é só isto. Eu quero mais, quero sentir que estou viva, que tenho um coração a pulsar no peito com a força de cem tambores, e sangue quente a correr-me nas veias. Quero sentir emoção, quero andar num limbo, quero sentir as pernas a tremer, chorar, rir, sonhar e ter um orgasmo tudo ao mesmo tempo.
Estou farta de tentar ser a super-mulher-completa-mais-que-perfeita. A que trabalha fora de casa e traz trabalho para casa. A que lava, passa, arruma, limpa, cozinha tudo com um sorriso. A que está sempre bonita, arranjada, perfumada. A que organiza jantares e festas, é anfitriã, programa, sabe estar, receber e conversar. A que fala sobre política, actualidade, cinema e literatura com toda a gente. A que anima e faz rir as pessoas. A que resolve todos os problemas. Quando é que chega o momento em que posso fazer algo diferente do que aquilo que me exijo a mim própria, e que os outros traçaram para mim? Onde por mais errado, louco e suicida que possa ser, eu posso fazer aquilo que quero, desejo e tenho vontade? Quando deixo de pensar nos outros e penso apenas e só em mim?
É que sabes, eu tenho um pequeno vulcão dentro do peito, que de vez em quando precisa deitar a sua lava cá para fora. Pode estar adormecido por um tempo, mas está lá, prestes a entrar em erupção e tomar conta de mim, da minha cabeça e do meu corpo. Todos nós temos esse pequeno vulcão, em maior ou menor intensidade, mas há quem seja muito hábil em extingui-lo, arrefecendo-o e acalmando-o cada vez que ele quer entrar em erupção, de tal forma que ele acaba por se apagar. Mas eu não penso assim. Porque sei que este vulcão não existe eternamente. Sei que, mais tarde ou mais cedo, com o tempo, a idade e os cabelos brancos, o meu vulcão se vai extinguir, e vai deixar de deitar lava para todo o sempre. E aí, vai restar apenas uma cinza adormecida e fumegante dentro do meu peito, aquela de quem já não espera nada de novo da vida. Por isso, enquanto tenho esta força telúrica, quero aproveitá-la, quero vivê-la em toda a sua plenitude, quero ter os meus necessários momentos de loucura, aqueles em que me liberto, e sou eu de cabelos ao vento, pronta para ser amada como realmente sou. Porque eu sou mesmo assim.
Não tenho nada contra as regras, muito pelo contrário. As regras são essenciais para a vida comunitária. Eu tenho muitas regras na minha vida, máximas, princípios, padrões de comportamento. Mas quando são as regras que tomam as rédeas da nossa vida e nos sufocam numa existência que já não é a nossa, é a delas, então já não somos de carne e osso, mas sim autómatos. Regras demais esmagam-nos. Regras a menos geram o caos, e isso também não é bom. Por isso, há que encontrar o equilíbrio perfeito, e isso passa por acrescentar uma dose sábia e bem medida de loucura, ao nosso dia-a-dia frio, minimalista e metodicamente organizado.
Aí sim encontramos um ponto de convergência, e podemos começar a trilhar o caminho para a felicidade plena. Tudo o resto não passam de meras ilusões que nós criámos, para nos sentirmos mais seguros e confortáveis, e que aceitamos pacificamente, de tal forma que somos controlados por elas. Do que é suposto fazer-se e dizer-se. Dos protocolos, das convenções, do socialmente correcto, do expectável. Mas o Mundo não se mede em estatísticas e eu quero desafiar isso, e construir para mim uma vida diferente da de toda a gente. Por isso te digo para não teres medo de amar, de confiar, de sonhar, de arriscar. Afinal, tens medo de quê? De te magoar? Já sabes o que isso é. De tomar o caminho errado? Já lá estiveste. De te entregar? Não tenhas, porque a entrega é o acto de comunhão e partilha mais intenso que o ser humano pode experienciar.
Sei que, apesar de não o dizeres, e de lutares contra ti mesmo para tentar apagar o que vivemos, sentes por mim uma mistura de paixão, desejo, loucura, mágoa, arrependimento, cumplicidade, amizade, saudade, tudo metido na máquina e centrifugado a 1400 rotações. Então, não tenhas medo de o dizer, abre o teu coração e deixa o sol entrar com um sorriso, e de peito aberto, aspira a tudo aquilo que a vida te pode dar, não te contentes com o mediano e medíocre, sonha sempre mais alto e não tenhas medo de cair, porque o chão foi feito para as pessoas dele se levantarem, liberta-te de toda essa prisão de sentimentos em que vives. Vais ser mais feliz, garanto-te. Vais viver em comunhão contigo mesmo e com quem te rodeia. Vais tremer de excitação, gritar de fúria, chorar de raiva e tristeza, enlouquecer de desejo e só aí te vais libertar e pairar acima de ti mesmo, leve e tranquilo como nunca estiveste.
Não precisamos um do outro para viver, mas talvez e apenas para nos sentirmos vivos.
Eu quero e preciso sentir-me viva, libertar-me destas cordas que me amarram e me prendem a uma existência limitada e forçada. Por mais errado que seja, às vezes temos mesmo de fazer aquilo que nos apetece. E isso sim, chama-se simplesmente, ser feliz.



Rita


Texto registado no IGAC

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Ciência do Futebol



O futebol é uma ciência, e pode ser bastante interessante, dizias tu, tentando convencer-me.
Logo a mim, que sempre fui aclubística, e nunca me interessei por desportos. Na escola sempre fui um desastre a Educação Física, e pertencia aquele clã que inventa desculpas atrás de desculpas, sempre as mais esfarrapadas possíveis, para não ir para os campos jogar futebol, basquetebol, andebol e voleibol. Nunca tive jeito para nada disto, e era daqueles contributos que todos dispensavam nas equipas, porque marcava golos na própria baliza quando passava a bola para o guarda-redes, e não era nada bom. Então era sempre a última a ser escolhida, e mesmo assim as equipas digladiavam-se para não ficarem comigo, já que eu devia muito à perícia e ao jeito para o desporto. E depois ninguém me passava a bola, com medo que eu arruinasse todas as jogadas tácticas e andasse aos pontapés sem rumo. Por isso criei uma espécie de imunidade aos desportos de bola, e não me conseguem interessar, por mais que me esforce. Nunca tive clube, nunca torci por quaisquer equipas, e só há bem pouco tempo é que torço pela Selecção Nacional, mas aí com o fervor de um religioso que vai a Fátima pagar pelas promessas.
Por tudo isto, o futebol sempre me passou completamente ao lado, e nada mais representava para mim do que vinte e dois homens suados a correr atrás de uma bola, e a tentar marcar golo nas balizas adversárias. Um bocado à semelhança do que fazem no dia-a-dia, mas isso agora não interessa nada.
Mas quando tu entraste na minha vida, percebi que o futebol podia não ser só isso e conseguiste-me mostrar que eu estava a ter uma visão redutora das coisas. Desde logo, porque o jogo obedece a uma táctica, cada jogador tem uma posição, mas no entanto, não se resume a ela, e têm todos de jogar em conjunto, obedecendo a uma estratégia, mais ou menos coerente, que permita fintar os adversários e marcar golo na baliza deles.
Há também que estudar os adversários, dizias-me tu no sofá da sala, nas tardes chuvosas de Domingo, e eu enroscada em ti e tapados com uma manta, no calor dos corpos e das carícias.
E aí percebi que no futebol, tal como na vida, temos de estudar os nossos adversários, saber como se movem, o que pensam, e tentar antecipar as reacções deles, de forma a impedir que levem a sua avante e nos prejudiquem no jogo.
Mas isso, todos fazemos no nosso dia-a-dia. Andamos constantemente a analisar e a fazer juízos de valor sobre os outros. Quando percebemos que determinada pessoa não é de confiança, e logo é um potencial adversário, também adoptamos uma táctica. Seja a do desprezo, seja a de analisar essa pessoa, saber o que é que ela pretende na verdade, e o que vai fazer a seguir, para melhor nos podermos defender. Afinal, sobre este prisma, o futebol até pode ser interessante, reconheci.
Também me ensinaste o que era um canto, um livre, e um fora de jogo, e depois de me explicares, até consegui reconhecer quando os árbitros estão a ser uns sacanas.
Às vezes, quando anulavam certos golos do teu Benfica, juntava-me a ti no coro da indignação, e em uníssono insultávamos o árbitro, claro está que não havia fora de jogo nenhum, o golo era válido, pois com certeza. E eu, que nem nunca gostei de futebol, conseguia então entender porque é que este desporto move montanhas, galvaniza, emociona e faz as pessoas saírem do sério como se um golo marcado e a vitória do clube fossem um prémio da lotaria.
Explicaste-me que a táctica de jogo é importante para uma equipa ser vencedora, mas sobretudo o que conta é como a equipa consegue pôr em prática essa táctica e funcionar em campo como um todo, sem individualismos. E eu assenti, e depois de reflectir um pouco, conclui que também na vida isso se passa, já que as pessoas vivem centradas em si mesmas, no seu pequeno e egoísta mundo, sem reparar que o mundo real, o de lá de fora, não começa nem acaba na sua porta de casa. Existem biliões de pessoas com problemas tão ou mais graves do que os nossos, e temos de pensar no bem comum e em alcançar algo melhor e mais importante do que a mera satisfação pessoal.
E em todas estas coisas eu divagava, com a cabeça deitada no teu peito, olhando para o ecrã, e vendo a bola a saltitar na relva verde, sendo pontapeada uma e outra vez, e mais um remate à baliza que falhava, e depois a outra equipa retomava a posse da bola e tentava marcar e rematava, mas também não conseguia o golo. E tu indignado, como é possível tanta azelhice junta? Com a baliza ali desprotegida, nem assim conseguem marcar?!?
E em silêncio mais uma vez reflectia, que na vida também sucede exactamente o mesmo. Porque passamos o tempo todo a correr com o coração aos pulos, a suar, a sofrer e a lutar por algum objectivo e depois, quando estamos mesmo à beirinha de o alcançar, deitamos tudo a perder. Seja por falta de sorte, jeito ou outra variável qualquer, simplesmente, não conseguimos marcar golo e os sonhos caem por terra e sentimos que foi tudo em vão.
Mas tal como a equipa de futebol, também nos levantamos do chão e retomamos o jogo, novamente correndo, sofrendo e lutando até conseguir. E às vezes conseguimos mesmo.
Quando duas equipas empatam, mas daquele jogo há mesmo que sair um resultado, tem de se ir ao desempate por penaltis, o que é muito injusto, porque não se atende ao mérito das equipas, nem ao jogo que têm vindo a fazer até aqui. Porque se torna sempre bastante difícil para o guarda-redes defender um penalti.
E eu sei que é verdade, porque na escola também me punham sempre de guarda-redes, já que eu não jogava nada. Então se a defesa fosse boa, não se importavam de me pôr ali na baliza sabendo que haveria alguém que não deixaria a bola chegar até mim, para eu nem sequer ter de a defender. Por isso sei que é muito difícil defender estas jogadas, já que eu passava a vida a levar com boladas na barriga e na cabeça. E uma vez levei uma tão forte no nariz que até fiquei a sangrar, e decidi que aquilo não era para mim. Logo eu que gostava tanto de ballet, aeróbica e das aulas de dança que frequentava. Andar ali a levar com bolas no nariz só para manter as amizades é que não. Foi aí que passei a integrar o clã dos atestados e das dores de barriga. Assim, percebo perfeitamente que seja quase impossível para os guarda-redes defenderem aquelas bolas que parece que vêm a deitar labaredas, tal é a força com que são pontapeadas.
E tudo isto me fazia sorrir aninhada no teu peito, enquanto me ias dando lições sobre a ciência do futebol, que afinal é bem mais complexa do que o que parece.
E falavas de jogadores, de treinadores, das máfias do futebol, dos milhões e dos interesses envolvidos nas transferências de clubes, e obrigavas-me a ver o Dia Seguinte e o Domingo Desportivo, mesmo quando eu queria ver a novela ou um filme qualquer.
Depois explicaste-me também os vários tipos de competições que existem, o que é a Liga dos Campeões, quem participa, o que é a taça UEFA, quantos clubes participam, como são escolhidos, e montes de outras coisas que já não me lembro. E de cada vez que víamos um jogo, me perguntavas, em jeito de questionário de concurso, quais eram as competições e formas de selecção, e eu metia os pés pelas mãos e inventava montes de coisas e regras que te faziam rir e não sabias onde eu ia buscar aquelas ideias todas baralhadas.
E eu ria-me também e pedia para me explicares novamente, não porque me interessasse muito, mas apenas para te demonstrar que se eu quisesse, também podia perceber de futebol, embora nunca o tenha sabido jogar. E tu rias ainda mais, e lá começavas a interminável ladainha que me fazia sentir mole, sonolenta e a flutuar e ia enterrando a minha cabeça no teu peito e nas almofadas, na Liga dos Campeões e nas taças douradas passando de mão em mão.
Mas depois foste embora e eu esqueci tudo. Agora já nem sei o que é um canto, nem um fora de jogo, não torço por nada nem por ninguém e simplesmente desligo a televisão quando está a dar algum jogo. Não sei nada de equipas, jogadores, treinadores, ou competições. Para nós, o jogo acabou num empate, e eu até consegui descobrir porquê: é que no futebol, como na vida e no amor, é sempre necessária uma estratégia bem planeada, e eu, nunca fui muito boa nestas coisas.

Rita

Texto registado no IGAC

Cinco Números, Duas Estrelas



Se te sentires insatisfeita, escreve, já dizia a minha professora de Português do ensino secundário. E ela tinha toda a razão. Isto porque a escrever podemos ser quem quisermos, desde um agente secreto, ao vilão, à mulher-fatal, mesmo que no fundo sejamos um patinho-feio com medo de sair da casca do ovo.
A escrever podemos voar alto, lá a roçar a estratosfera, sem medo de cair, sonhar e divagar, criar fantasias mais ou menos reais, mais ou menos exequíveis, e deixar que os pensamentos fluam e se materializem num papel ou num ecrã de um qualquer computador, onde passam a ser reais e palpáveis.
Há várias formas de sonhar, e a minha sempre será escrever.
A escrever ninguém sabe quem somos naquele momento, e podemos ter as virtudes e qualidades que sempre sonhámos, mas com as quais a vida, a natureza ou outro elemento metafísico qualquer não nos bafejaram. Podemos contar histórias, relatos, verdades, mentiras, e ninguém sabe muito bem do que estamos a falar, se se trata da nossa vida, se é tudo inventado, ou se são histórias que já presenciámos ou ouvimos no metro ou no comboio de manhã, a caminho do trabalho, entre um jornal, uma revista e a música no mp3. Podem tentar fazer analogias com a nossa própria história de vida, porque todo o escritor é sempre um pouco autobiográfico, mas ficará indefinidamente a dúvida a pairar no ar, se falamos de nós, de uma personagem, ou de outro alguém que conhecemos noutra vida que vivemos.
Escrever é mesmo assim, não é para quem quer, é apenas para quem sente e pode. É para quem está na fronteira do sono e começa a ser bombardeado com letras gigantescas que formam palavras, até a consciência despertar a começar a formar frases, ideias e textos completos em fracções de segundos. É para quem está no meio de uma tarefa chata e começa a sentir algo estranho, luminoso, que aquece o peito e dá vontade de começar a correr e passar tudo para o papel para que nada se perca. É a sensação de plenitude que se tem, mesmo que se saiba que nunca ninguém vai ler tais escritos. Escreve-se com alma e coração, quando não se escreve, sai sempre uma grande porcaria, pelo menos isto era o que dizia também a minha professora de Português, que vestia umas calças de ganga com uns lápis bordados a cor-de-rosa, e umas camisolas de malha com mangas de balão e chumaços, já mesmo nos anos 90. Ela vestia-se muito mal e completamente fora de moda, mas lá que sabia escrever, sabia. E também sabia ser boa professora, o que hoje em dia é muito raro. Foi a primeira pessoa que chorou com um texto que eu escrevi, sem ser a minha mãe, e por isso nunca a esqueci. Foi também quem sempre me motivou a escrever mais e melhor, por isso foi um estímulo muito importante.
Sempre que estiveres insatisfeita, escreve, dizia ela. A levar à letra este conselho, que aliás é bem verdadeiro, e que sigo quase instintivamente, sem saber porque o faço, mas sabendo apenas que escrever alivia a minha insatisfação crónica e me preenche de alguma forma, eu passaria os dias a escrever. Como se o buraco de areia que escavo em mim diariamente até me sentir oca, pudesse de repente ser preenchido por um monte de palavras, pensamentos, reflexões, exteriorizações que me fazem sentir cheia como se tivesse almoçado três pratos cheios de comida, sobremesa e café. É assim que me sinto quando escrevo. Cheia, realizada, plena, feliz. Até podem ser só banalidades, podem os meus pensamentos ser recorrentes, posso usar clichés e lugares-comuns, posso falar do que toda a gente já sabe e não acrescentar nada de novo, mas sinceramente, estou-me nas tintas. Não escrevo para os outros, mas simplesmente para mim. Posso parecer egocêntrica, mas para mim escrever é um acto de amor, o amor que tenho pela própria escrita. Amo escrever, por isso escrevo com amor. Escrevo para me preencher, se alguém se identificar com o que escrevo, melhor.
Todos nós gostávamos de ser, ter ou fazer algo que não conseguimos. Todos nós temos sonhos, desejos, aspirações por preencher e alcançar. Para mim, eles estão todos ao alcance dos meus dedos e do meu pensamento, porque enquanto escrevo sou quem quero ser e vivo a vida que sonho ter. Sofro, exulto de alegria, rio e choro com um simples momento de escrita. Transcendo o imediato e transporto-me para outra dimensão, onde componho a minha vida, e a vida dos outros, à minha maneira e como eu a vejo.
Porque cada um vê as coisas como quer, como entende, como é melhor, como lhe convém. Por isso, não há verdades absolutas e tudo depende da interpretação que se faça dos factos.
Mas voltando à insatisfação, eu penso que hoje em dia as pessoas são muito insatisfeitas. A sociedade actual está sempre à procura de algo mais, nunca está contente com nada, vivemos um tempo em que ainda não se tem uma coisa e já se está a pensar no que se quer a seguir.
Dantes, na classe média, as pessoas tinham menos formação, arranjavam trabalhos modestos, ou tinham boa formação académica e arranjavam bons empregos a ganhar bem e sair cedo. Tinham a casa que podiam ter, andavam de autocarro, iam passear a Cascais no fim-de-semana, ou a Azeitão comer as tortas do Cego e eram felizes assim. Tinham três e quatro filhos, e as roupas, carrinhos e demais material infantil passavam de uns para os outros. As irmãs mais velhas davam o berço dos filhos ao futuro sobrinho que ia nascer. Na escola, as crianças aprendiam o básico e não havia cá actividades extra-curriculares. Actividades extracurriculares significava jogar ao elástico, à bola, ao pião, ao berlinde e às escondidas, e comer caramelos e chupa-chupas.
Passeava-se de mão dada com os pais no supermercado e à noite liam-se histórias aos filhos. As férias eram passadas no Algarve com uma casa alugada à quinzena para sete ou oito pessoas, ou na terra natal em casa das tias, tios, primos, e avós e serviam para matar as saudades da família e promover o convívio.
Hoje em dia, isto está totalmente fora de moda, e parece daquelas série antigas que passam na RTP-Memória.
Hoje a classe média é licenciada, mestrada e até doutorada, e ou tem a sorte de ter um belo tacho a ganhar um bom ordenado numa empresa ou Ministério qualquer, ou está numa caixa de supermercado, e por vezes, ainda melhor, no fundo de desemprego. Uns moram em grandes lofts ou moradias com vãos envidraçados, acabamentos xpto, móveis design, com jacuzzi nas casas de banho, azulejos de um designer espanhol que ninguém sabe quem é, mas que custaram 120 euros o m2, jardim, piscina, porta blindada, vídeo porteiro, domótica e demais comodidades. Os outros moram num T2 cinzento, cheio de humidade no tecto, têm sacos de roupa fora da estação na arrecadação a cheirar a bafio, e sonham com a casa dos primeiros.
Esses andam de jipe BMW X5 ou num Mercedes desportivo enquanto os outros têm um Opel Corsa de quinze anos com mais emissões de CO2 que um navio de cruzeiro, passo o exagero, e sonham com o carro dos primeiros.
Os primeiros vão passar o fim-de-semana à Serra Nevada onde têm um chalé, os segundos continuam a ir a Cascais, ao Guincho e a Azeitão comer tortas, porque isto há que saber ser pobre e feliz, e um pobre com a boca doce, é sem dúvida mais feliz.
Os primeiros têm um filho que se chama Martim ou Francisco e vai para os Salesianos ou para o Colégio Militar. Frequentará a esgrima, equitação, o judo, karaté, natação, piano, inglês e francês mesmo só tendo três ou quatro anos, mas que interessa isso agora? É de pequenino que se torce o pepino, lá diz o ditado popular…Ele há-de ser gestor como o pai, ou médico como o avô, e um destes dois há-de-lhe arranjar um tacho para perpetuar as tradições da família de ganhar bem e sair cedo.
Os segundos terão dois filhos, a Rute e o Filipe, que frequentarão a escola pública e nunca poderão andar na ginástica, nem na natação, no karaté, no piano ou ballet, porque os pais ganham mil euros por mês que mal dão para pagar a renda do T2 bafiento, quanto mais para estes luxos. Hoje também já quase não há histórias, nem tempo para elas, apenas a Play Station.
Agora os filhos ainda crianças, mandam nos pais, cobram, berram, exigem, chantageiam desde a mais tenra idade.
Os filhos dos primeiros fazem birras no El Corte Inglês e pedem tudo o que vêm, e os pais comprarão só para não os ouvir gritar mais. Os filhos dos segundos também gritam e choram no supermercado, mas só das primeiras vezes, porque facilmente percebem que gritar não os vai levar a nada, porque quando não há dinheiro, não há mesmo, venha lá quem vier. E as olheiras da mãe, e o ar baço do pai, de barba por fazer e mãos nos bolsos, elucidam claramente que não há brinquedos para ninguém. Mas também eles, esses pequenos seres, sonham já com a vida dos filhos dos primeiros…
Os primeiros passam férias três ou quatro vezes por ano, vão para as Maldivas no Verão, e deixam o filho com os avós paternos e maternos, à vez, que é para não os cansar muito.
Os segundos não vão de férias, porque simplesmente não podem, e aproveitam o subsídio para amortizar mais umas prestações do T2 bafiento…
E é assim que a vida se molda e se estrutura, sem atender ao mérito, ao empenho, ao esforço, às qualidades pessoais de cada um. O tempo vai passando e a vida não dá grandes condições para mudar o estado de coisas instituído das pessoas que vivem vidas remediadas. Por isso, a classe média, sector pobre, sonha com o Euro Milhões, joga todas as semanas nem que seja apenas dois euros, que isto quando tem que sair, tem mesmo, e não é por se jogar mais que há-de sair, argumento típico de quem tem o dinheiro curto na carteira. E alimentarão os sonhos de uma enorme casa, de viagens, melhor escola para os filhos, mais filhos talvez, ajudar os pais, os amigos e os necessitados. E assim se vão preenchendo pouco a pouco, a si mesmos e aos buracos da insatisfação que teimam em alastrar pelos corpos, colando bolas de espuma nos bocadinhos vazios do peito que teimam em ruir devagarinho, com o passar dos anos e dos sonhos que ficam para trás. Assim vão sonhando a vida que queriam ter, e tapando as fendas da ilusão de uma melhor, que permitisse não andar sempre a fazer contas, a esticar o dinheiro, a esperar pelo reembolso do IRS e que o seguro do carro se atrase. Assim conseguem ir vivendo a existência mais colorida que gostariam de ter, guiando o carro que sempre sonharam, indo de férias para uma ilha deserta, tudo apenas até à sexta-feira seguinte, em que o prémio afinal não sai, mas bolas, desta foi quase, tive os números todos próximos, para a semana é que é, se Deus quiser. E em vez das tortas de Azeitão, perguntam-se a que saberá o champanhe e caviar que vêm nas revistas do jet-set os ricos a beber e a comer, e imaginam tudo isto ao alcance de cinco números e duas estrelas.
Mas para mim, estrelas são apenas as que vejo no céu quando a noite cai e a lua ilumina o mundo. Por isso mesmo, continuo a preferir escrever.

Rita
Texto registado no IGAC