quinta-feira, 4 de março de 2010

Mais um Ano


Fiz anos há uma semana e confesso que não estou nada feliz com isso. Não sei se é o peso da idade, da responsabilidade, mas secretamente acho que é apenas o olhar para trás e fazer comparações, do tipo: «Eu o ano passado, estava a fazer isto e mais aquilo. E agora?». Ora eu olho para trás, e estava precisamente na mesma, ou talvez melhor do que me encontro agora. Mas reconheço que essa sensação também se pode dever à visão pessimista com que ando da vida.
A R. diz-me que não tenho motivos nenhuns para pensar assim porque sou feliz, jovem, bonita, independente, tenho um emprego e uma casa. Pensando em tudo isso, chego à conclusão que, se calhar, não tenho mesmo motivos nenhuns para estar triste, o mais que posso estar, se não consigo estar feliz, é ficar normal e apática, como se nada se passasse.
As pessoas que me rodeiam estranham a minha tristeza quando vejo a data do aniversário a aproximar-se. Mas nem eu sei explicar porque me sinto assim, quando faço anos. Este sentimento é relativamente recente, porque dantes não me lembro de ficar assim. Há bem poucos anos atrás, nem conseguia dormir na véspera, com a agitação e o entusiasmo, pensando nos preparativos, nos amigos, nas festas, nos bolos, nas prendas, nos telefonemas. Era um jantar com a família, outros com os amigos, bolos, doces, fins-de-semana fora, noitadas malucas, parabéns cantados, velas sopradas, apagadas e mordidas, e aquele desejo secreto pedido em silêncio com a certeza plena da sua realização. Beijos, abraços, postais, flores e telefonemas. Tudo isso perdeu o encanto, para mim, agora.
Não acho a menor piada a fazer anos, e intimamente desejava que esse dia fosse apagado do calendário anual, ou que todos milagrosamente se esquecessem dele, e me deixassem esquecer também, que mais um ano passou e que as metas que tracei para mim parecem cada vez mais distantes.
Acho que estou mesmo a ficar velha, ou então é um vírus que anda aí e me ataca todos os anos na altura do meu aniversário.
Bem, também não interessa. Tenho de viver este dia e não há nada a fazer, não é? Esperava em segredo poder passá-lo todo a dormir, sem ninguém se lembrar que eu existo, e assim ficaria na paz dos anjos, esquecida de que tenho mais um ano, e se calhar tudo se passava sem eu dar por isso.
Mas não, novamente não consegui levar adiante os meus intuitos. Era 00h05m quando me ligaste. Mais uma vez foste a primeira pessoa a dar-me os parabéns. Desatei a chorar quando ouvi a tua voz, nem sei bem porquê. Senti-te estupefacto do outro lado do telefone ao ouvires o meu pranto. Acho que nem eu sabia porque estava a chorar tão desesperadamente. Apetecia-me chorar, só isso, tinha de libertar toda aquela angústia de qualquer maneira. E quando tu ligaste, nem sei se me senti feliz, se triste…
Perguntaste-me o que se tinha passado para estar a chorar daquela maneira. Eu respondi-te entre soluços, que estava triste. E tu, numa daquelas saídas maravilhosas disseste «Até aí, já tinha chegado. Não conheço ninguém que chore assim de felicidade».
Perguntaste em seguida porque é que estava triste. Lembro-me de na altura me terem passado mil e uma ideias pela cabeça, mas nenhuma concreta e plausível para explicar ou justificar o meu estado de espírito naquele momento.
Só me ocorreu dizer-te que estava deprimida…Como te explicar afinal de contas esta avalanche de sentimentos que vão dentro de mim? Ou será que é preciso explicar? Será que tu já não sabes exactamente como me sinto, apesar de não ter pronunciado uma palavra?
Será que não sabes que me sinto profundamente infeliz, desamparada, perdida, frustrada, com medo de tudo e de todos? Com vontade de correr para ti e sufocar-te num abraço? Com vontade de desaparecer e regressar aos cinco anos de idade, para não ter responsabilidades nem medos e para ter alguém que cuidasse de mim? Tenho uma imperiosa necessidade de alguém que me proteja. Sinto-me tão estúpida e tão frágil por confessar isto, mas é verdade. Sei que tenho a mania que sou forte, e que ninguém me desafia e que viro o mundo do avesso, mas é mentira. Por dentro sou a criatura mais frágil que possas imaginar. Tenho tantos medos e inseguranças, que às vezes sinto que carrego o mundo às costas, e só tenho vontade de me esconder debaixo da cama, como quando fazia em criança, e rezar para que ninguém me encontre, e me deixem sossegada.
Às vezes rio-me com vontade de chorar, e quase sempre falo alto e de forma arrogante quando me sinto como um coelhinho assustado. É contraditório, eu sei. Mas tu sabes que comigo, nada é fácil. E afinal de contas, se as pessoas fossem todas simples e não complexas, o mundo era perfeito, não havia guerra, nem fome, nem injustiça, nem sofrimento. Temos de aceitar as coisas como elas são, e tentar tirar o melhor partido daquilo que nos rodeia.
Ah, mas às vezes não é nada fácil…
Entretanto tentaste-me animar, e dizer que eu não tinha motivos para estar assim tão infeliz. Mas eu continuei a sentir-me a mulher mais triste ao cimo do planeta e arredores, e com uma incomensurável vontade de te pedir colo e miminhos. Mas, mais uma vez, fiz-me de forte e disse-te que já me sentia melhor.
A partir daí começou a anual e já habitual torrente de telefonemas e mensagens a congratularem-me por mais um aniversário. Se soubessem o meu estado de espírito nem uma palavra me diziam…Sei que estou a ser injusta, afinal de contas são pessoas que me amam e me querem bem, desejam apenas felicitar-me. E se ninguém me ligasse ou dissesse nada, como eu secretamente pedi, tenho a certeza que ficaria mais infeliz ainda, porque é da natureza do ser humano nunca estar contente com nada.
E então foi assim…Mais um ano se passou. As mesmas caras, os mesmos sorrisos. Obrigada pelos parabéns, gostei muito do cartão, a prenda é linda mas não queria que te estivesses a incomodar, pois mais um ano é verdade, já sou uma mulherzinha, o bolo tem recheio de ovo, a cobertura é de chocolate, sim senhor, está muito bom, desculpa vou rasgar o papel de embrulho porque não consigo abrir a prenda, oh tão bonito, estava mesmo a precisar, gostei muito, claro…
Amanhã acordo e já passou tudo.
Mas tenho mais um ano.



Rita

Texto Registado no IGAC

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Afinal sou Feliz


O meu chefe é um cabrão da pior espécie. Estou farta deste emprego e quero ser eu mesma, e aqui não vou conseguir.
Estou a ser sobrevalorizada e as minhas capacidades totalmente menosprezadas e ignoradas como um cão vadio que ninguém quer adoptar. Sinto que tenho que dar o salto e pirar-me daqui, é a minha vida, felicidade e realização profissional que estão em jogo. Mas que merda, porque é que eu aceitei vir para este jornal? Ah já sei, foi porque me ofereceram o dobro do salário que ganhava na revista. Eu deveria estar a trabalhar como free lancer e escritora, estaria desempregada decerto, mas pelo menos mais feliz do que estou agora. O cabrão atribui-me os artigos com três horas até ao fecho da edição, e ainda tem a lata de me mandar fazer correcções de última hora, que se prendem com rectificação de algumas «opiniões» mais contundentes que eu possa ter, só para não ferir susceptibilidades mais sensíveis. Acho isto ridículo e inadmissível. Por isso é que a comunicação social deste país está como está. Então eu tenho que escrever artigos para servir os interesses de uns e de outros? Não posso relatar as coisas como elas são? Não posso expressar livremente as minhas opiniões? Se era para isto, devia ter tirado um curso de esteticista e estava na Polinésia, a fazer tranças aos turistas e a beber pinas coladas num overwater bungalow qualquer. Garanto que estaria mais realizada, e ao menos aí poderia dizer o que bem me apetecesse, já que ninguém me censuraria, aliás correcção, ninguém me entenderia.
Realmente olho para trás e sinto-me desmotivada até às últimas.
De que é que serviram tantos anos de estudo, trabalho, dedicação, investimento pessoal e financeiro? De nada, absolutamente de nada. Estou aqui num jornal de segunda, a ser censurada por um seboso careca que escreve há de haver sem H, e que supostamente é meu chefe. Mas que às vezes até eu duvido que seja.
Tenho vontade de mandar esta gente toda à merda, levantar-me e ir-me embora. De lhe dizer que não preciso disto para nada. De gritar a plenos pulmões que escrever é a minha vida, a minha paixão, e não posso ser controlada ou cerceada com intuitos tendenciosos, para servir os interesses de uns manhosos quaisquer, que eu nem conheço. De me rebelar contra o sistema e a ordem instituída, fazer uma rasta no cabelo e ir lá para fora cantar canções de intervenção. Preciso encabeçar um motim neste jornal.
Olho para o lado. A minha colega Joana está concentradíssima no trabalho. Olho para trás. O meu colega Rui está ao telefone com a mulher todo meloso. A Susana traz-me um café e um donut como se estivéssemos naqueles jornais importantes de Nova Iorque. Tenho frio e fome, estou esgotada, quero sair daqui. Metade de mim quer-se amotinar na casa de banho e recusar-se a sair senão com a promessa do fim das injustiças, segregações, e precariedade laboral. A outra metade devora o donut e quer ir para casa aquecer-se à lareira e deixar as lutas para outro dia…Olho em redor, cada um está concentrado nos seus afazeres, uns a trabalhar, outros a fingir que trabalham, mas todos estão serenos e apáticos. Só eu aqui nesta agitação. Será normal? Se calhar bebi demasiado café hoje.
Mas sei que devia e que tenho de fazer alguma coisa para mudar este estado de coisas. A minha vida não vai mudar se eu não começar a agir e depressa. Estou com trinta anos, é agora ou nunca. A ansiedade começa a tomar conta de mim. Não quero fazer este trabalho a vida toda, morar num apartamento e ganhar mil euros por mês (abençoados eles sejam, não quero ser ingrata porque anda posso ficar sem eles e aí suicidava-me). Quero escrever livremente, quero novos desafios profissionais, quero evoluir profissionalmente e ser reconhecida pelo meu trabalho, quero ganhar dinheiro que me proporcione conforto. Quero ter uma casa grande com piscina e tudo a que tenho direito. Quero viajar, poder comprar aquilo que quero sem ter sempre de andar a fazer contas. Bolas, tenho direito a sonhar. Se calhar é pedir muito, mas afinal de contas eu não estou a pedir nada, senão a mim mesma. Sou ambiciosa e sempre o fui, mas a ambição é uma coisa boa, é uma força motriz, é um motor de desenvolvimento do EU. Se nos contentamos com o que já temos, então o que vamos fazer para melhorar? Nada. Vamos ficar a preguiçar e à espera que chegue a hora de ir para casa sem fazer nada de novo, e útil, sem acrescentar nenhum valor a esta sociedade tão medíocre que já temos. E eu não quero isso para mim. Sonho com voos bem altos e tenho o direito a fazê-lo porque sempre tenho lutado por isso, através do estudo e contínuo investimento na minha formação e valorização profissional. Por isso recuso-me a aceitar que seja esta a minha vida para sempre.
Perdida nestas ideias revolucionárias e ansiando por mudança, levanto-me e vou à janela. Está tanto frio! Os vidros estão todos embaciados. Começo a fazer desenhos nos vidros como quando era criança e a minha mãe sempre a gritar, pára com isso que depois fica tudo sujo!
As pessoas correm para apanhar os transportes de volta a casa, numa azáfama de casacos, cachecóis, malas e sacos. Uma vendedora de castanhas esfrega as mãos uma na outra numa expressão de frio e desalento de quem não vendeu nada. As pessoas estão com pressa e também não há dinheiro para as castanhas. Isto está uma alta crise. Até as castanhas estão caras, uma dúzia dois euros, e ainda por cima fazem gases, algumas vêm com bichos, e o jornal suja as mãos. Coitada da vendedora!
Está um sem-abrigo à entrada do metro com um cobertor pelas costas, a pedir esmola. As pessoas passam por ele e ignoram-no, algumas com a pressa até tropeçam nele. Todos o vêm mas ninguém lhe dá uma moeda, ou sequer um sorriso ou uma palavra, e ele ali continua com o cobertor nas costas, gorro na cabeça e a barba banca já bem longa….Um cego desce as escadas do metro auxiliado por uma senhora idosa que o ajuda a atravessar a passadeira…Contemplo isto tudo como um espectador e começo-me a sentir mal. Mal comigo mesma.
Eu afinal estou-me a queixar do quê? Tenho um emprego, tenho uma casa quente onde dormir, tenho saúde, sou inteligente, tenho uma boa formação, sou jovem e bonita, do que é que me queixo? Sou injusta? Queria uma vida diferente, é certo, e lutarei por ela, mas já não é tanto e tão abençoado o que tenho? Certamente que é…Olho para estas pessoas anónimas e penso que vidas terão elas, que sonhos povoarão os seus pensamentos, que desejos secretos elas têm e se serão parecidos com os meus, se envolvem casas grandes cheias de crianças a rir, uma família reunida à lareira a contar histórias, cães e gatos, viagens, livros, bons vinhos, jantares e gargalhadas … Todas elas devem querer algo, desejar algo para as suas vidas, e em vez disso muitas têm a miséria, o desprezo da sociedade, a doença, a deficiência, a marginalização, a exclusão social.
E eu aqui a pensar que queria ganhar cinco mil euros por mês. Desço à realidade. Toca o telemóvel. É a minha mãe que quer que eu vá jantar lá a casa, porque fez carne assada recheada com castanhas. Pergunto-lhe estupidamente onde é que comprou as castanhas. Lamento em silêncio que ela me responda: no Pingo Doce, querida porquê? Esquece mãe, sou eu que estou a perder o juízo. Desculpa, mas fica para outro dia, quero ir para casa. Desligo o computador, dou a última trinca no donut e sorrio para a Susana que está a tirar cópias, com o ar mais feliz deste mundo. Penso que sou uma insatisfeita crónica. Vou-me embora para casa, porque amanhã é outro dia. Vou fazer o jantar, aquecer-me junto à lareira e acabar o meu livro de um só fôlego. Afinal sou feliz, só que ainda não o sei.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Polivalência Funcional


Dantes a vida das mulheres era bem mais fácil, embora não tivesse tanta dignidade e independência. Tudo tem vantagens e desvantagens e a emancipação da mulher não é excepção.
Antigamente, as mulheres viviam para tratar da casa e dos filhos. Viviam numa panóplia simplista de fraldas e panelas, cuidando das crias, alimentando-as, lavando-as, vigiando-lhes as febres e as dores dos primeiros dentes. Cozinhavam, tratavam da casa, faziam compotas, jardinagem e ponto cruz e eram felizes assim. No dia seguinte, acordavam de manhã e as rotinas eram exactamente iguais, mas as mulheres não se importavam e sentiam –se preenchidas dessa forma, mesmo que não tivessem ideais mais longínquos do que os de criar os filhos e vê-los crescer, e aperfeiçoar-se progressivamente nas tarefas domésticas.
Andavam sempre afogueadas com os tachos e com as pantufas do marido à lareira que chegava do trabalho e queria aquecer os pés. E eram umas escravas domésticas, que se fartavam de trabalhar mas que não ganhavam dinheiro, e se queriam comprar um vestido ou uns sapatos tinham de pedi-lo ao marido. Mas isto não era necessariamente mau. Porque se se tivesse a sorte de ter um bom marido, a vida era perfeita. Já que o marido entregaria todo o dinheiro à mulher para ela efectuar a gestão da casa, e ela faria o que bem entendesse com ele, sem lhe dar mais satisfações do que as estritamente necessárias. E efectuaria as compras indispensáveis para a casa, para os filhos e para ela , claro está. Ora digam-me lá, o que é que uma mulher precisa mais? Pensando bem, acho que não era assim tão mau quanto isso.
Agora se o marido fosse daqueles autoritários, arrogantes e prepotentes, que trata as mulheres como meras empregadas domésticas aí é que a coisa poderia ser feia. Isto porque ninguém gosta de trabalhar e não ser reconhecida, levar com maus modos, não ser respeitada nem admirada, e ainda ter de pedir dinheiro para ir ao cabeleireiro. Toda a gente, e sobretudo todas as mulheres gostam de ser reconhecidas, e as deste tempo não eram diferentes com certeza. Quando as coisas davam para o torto , as mulheres não podiam simplesmente mandar o marido passear e bater com a porta como fazem hoje. Tinham de aguentar em silêncio porque não tinham emprego nem meios de subsistência, e eram olhadas com desconfiança quando se separavam do cônjuge.
Mas tudo mudou. Agora as mulheres trabalham fora e dentro de casa e ainda trazem trabalho para casa. Levantam-se às seis ou sete da manhã, tomam banho, arranjam-se, dão banho aos filhos, vestem-nos e fazem o pequeno-almoço. Andam sempre a correr e stressadas. Maquilham-se nos semáforos e levam os filhos ao infantário. Chegam ao trabalho ofegantes como se tivessem acabado de correr a maratona , e é apenas neste momento em que se sentam à secretária, que experimentam algo mais parecido com o descanso. Trabalham freneticamente, mandam e -mails, atendem telefonemas, participam em reuniões, e durante tudo isto trocam sms com o marido perguntando -lhe o que deseja jantar, e falam com a mãe no telefone fixo para saber se ela está melhor da gripe.
À hora do almoço aproveitam para ir ao banco, aos correios, ao supermercado e buscar as camisas do marido à lavandaria. Almoçam uma sopa ou uma salada porque hoje em dia com a ditadura da moda e da magreza que as top models instituíram como lei para cumprir, sob pena de morte, uma gaja não se pode esticar muito nas gorduras nem nos hidratos de carbono mesmo que lhe apeteça comer este mundo e o outro.
Por vezes vão ao ginásio à hora de almoço para terem tempo de ir directas de casa para o trabalho, e passam a vida a gerir o tempo da forma mais eficiente possível , como se disso dependesse a sua sobrevivência, porque de facto depende.
Trabalham sem parar até chegar a hora de ir para casa. Correm novamente até ao infantário e abraçam os filhos, que gritam, contentes por rever a mãe como se já tivessem passado duas semanas. Chegam a casa numa azáfama de malas, sacos e filhos e fazem o jantar sozinhas, ou com a ajuda do marido se ele conseguiu sair a horas, dão a comida às crianças, dão –lhes banho, jantam, arrumam a cozinha, levam o cão à rua, e quando dão por elas mais um dia se passou.
Sentem diariamente a pressão de terem de ser perfeitas. De solucionarem todos os problemas, de estarem sempre bonitas, arranjadas, bem-dispostas, disponíveis, preocupadas, infalíveis. De lavar, passar, arrumar, cozinhar, tudo com um sorriso. De afagar os filhos e ajudá-los nos trabalhos de casa. De serem esposas, amantes, mães, executivas, donas-de-casa.
Quando é que as mulheres param? E ainda dizem que não há super -mulheres! Hoje em dia muitas mulheres são dotadas de poderes mágicos de abnegação, dedicação, força e resistência mais do que qualquer personagem invencível!
Quando é que deixamos de nos exigir progressivamente mais a nós próprias até entrar na espiral do desconforto e exaustão? Quando é que podemos ir ver a bola com os amigos, ir beber imperiais ao café da esquina sem ninguém nos perguntar porque é que deixámos a loiça por lavar ou a roupa por estender?
Porque é que as mulheres têm de saber fazer tudo e os homens têm de ajudar a fazer alguma coisa?
Sempre com algum esforço e com o argumento que são tarefas das mulheres? Que eu saiba, com a polivalência funcional, já não há tarefas das mulheres, pelo menos não agora nos tempos que correm. Isso era dantes em que as tarefas domésticas competiam às mulheres, mas as tarefas laborais competiam única e exclusivamente aos homens. Em vez disso, agora ganhamos o nosso dinheiro e podemos bater a porta quando queremos porque não precisamos de ninguém para nos sustentar, mas também trabalhamos dez vezes mais. Somos respeitadas e fazemos ouvir a nossa voz. Ganhamos o nosso próprio dinheiro, usamo-lo como queremos e não temos de prestar contas a ninguém. Fazemos acatar a nossa vontade e sentimo-nos úteis à sociedade e a quem nos rodeia. Acumulamos tarefas até à fronteira do cansaço, e desafiamos os nossos limites e uma coisa que se chama tempo , que é o recurso mais escasso na vida de uma mulher hoje em dia. Se o tempo se vendesse aí numa loja qualquer, eu seria decerto a sua maior consumidora, porque para mim o tempo nunca chega para as mil tarefas que tenho para cumprir, e precisava de um dia com cerca de cem horas para poder fazer tudo o que necessito. Eu e outras mulheres que vejo por aí, sempre a correr, sorridentes e perfumadas mesmo que às seis da manhã quando o despertador toca lhes tenha dado vontade de parar o mundo e esquecer tudo.
Chego à conclusão que prefiro a vida de hoje, mesmo com as chatices, mesmo com as resmunguices dos chefes, mesmo que faça as tarefas dos homens e das mulheres ao mesmo tempo e ainda use saltos agulha.
Tudo tem o seu preço, e este é o da polivalência funcional que escolhemos. E eu acho que, apesar de todas as contrariedades, valeu a pena.

Rita
Texto registado no IGAC