terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Afinal sou Feliz


O meu chefe é um cabrão da pior espécie. Estou farta deste emprego e quero ser eu mesma, e aqui não vou conseguir.
Estou a ser sobrevalorizada e as minhas capacidades totalmente menosprezadas e ignoradas como um cão vadio que ninguém quer adoptar. Sinto que tenho que dar o salto e pirar-me daqui, é a minha vida, felicidade e realização profissional que estão em jogo. Mas que merda, porque é que eu aceitei vir para este jornal? Ah já sei, foi porque me ofereceram o dobro do salário que ganhava na revista. Eu deveria estar a trabalhar como free lancer e escritora, estaria desempregada decerto, mas pelo menos mais feliz do que estou agora. O cabrão atribui-me os artigos com três horas até ao fecho da edição, e ainda tem a lata de me mandar fazer correcções de última hora, que se prendem com rectificação de algumas «opiniões» mais contundentes que eu possa ter, só para não ferir susceptibilidades mais sensíveis. Acho isto ridículo e inadmissível. Por isso é que a comunicação social deste país está como está. Então eu tenho que escrever artigos para servir os interesses de uns e de outros? Não posso relatar as coisas como elas são? Não posso expressar livremente as minhas opiniões? Se era para isto, devia ter tirado um curso de esteticista e estava na Polinésia, a fazer tranças aos turistas e a beber pinas coladas num overwater bungalow qualquer. Garanto que estaria mais realizada, e ao menos aí poderia dizer o que bem me apetecesse, já que ninguém me censuraria, aliás correcção, ninguém me entenderia.
Realmente olho para trás e sinto-me desmotivada até às últimas.
De que é que serviram tantos anos de estudo, trabalho, dedicação, investimento pessoal e financeiro? De nada, absolutamente de nada. Estou aqui num jornal de segunda, a ser censurada por um seboso careca que escreve há de haver sem H, e que supostamente é meu chefe. Mas que às vezes até eu duvido que seja.
Tenho vontade de mandar esta gente toda à merda, levantar-me e ir-me embora. De lhe dizer que não preciso disto para nada. De gritar a plenos pulmões que escrever é a minha vida, a minha paixão, e não posso ser controlada ou cerceada com intuitos tendenciosos, para servir os interesses de uns manhosos quaisquer, que eu nem conheço. De me rebelar contra o sistema e a ordem instituída, fazer uma rasta no cabelo e ir lá para fora cantar canções de intervenção. Preciso encabeçar um motim neste jornal.
Olho para o lado. A minha colega Joana está concentradíssima no trabalho. Olho para trás. O meu colega Rui está ao telefone com a mulher todo meloso. A Susana traz-me um café e um donut como se estivéssemos naqueles jornais importantes de Nova Iorque. Tenho frio e fome, estou esgotada, quero sair daqui. Metade de mim quer-se amotinar na casa de banho e recusar-se a sair senão com a promessa do fim das injustiças, segregações, e precariedade laboral. A outra metade devora o donut e quer ir para casa aquecer-se à lareira e deixar as lutas para outro dia…Olho em redor, cada um está concentrado nos seus afazeres, uns a trabalhar, outros a fingir que trabalham, mas todos estão serenos e apáticos. Só eu aqui nesta agitação. Será normal? Se calhar bebi demasiado café hoje.
Mas sei que devia e que tenho de fazer alguma coisa para mudar este estado de coisas. A minha vida não vai mudar se eu não começar a agir e depressa. Estou com trinta anos, é agora ou nunca. A ansiedade começa a tomar conta de mim. Não quero fazer este trabalho a vida toda, morar num apartamento e ganhar mil euros por mês (abençoados eles sejam, não quero ser ingrata porque anda posso ficar sem eles e aí suicidava-me). Quero escrever livremente, quero novos desafios profissionais, quero evoluir profissionalmente e ser reconhecida pelo meu trabalho, quero ganhar dinheiro que me proporcione conforto. Quero ter uma casa grande com piscina e tudo a que tenho direito. Quero viajar, poder comprar aquilo que quero sem ter sempre de andar a fazer contas. Bolas, tenho direito a sonhar. Se calhar é pedir muito, mas afinal de contas eu não estou a pedir nada, senão a mim mesma. Sou ambiciosa e sempre o fui, mas a ambição é uma coisa boa, é uma força motriz, é um motor de desenvolvimento do EU. Se nos contentamos com o que já temos, então o que vamos fazer para melhorar? Nada. Vamos ficar a preguiçar e à espera que chegue a hora de ir para casa sem fazer nada de novo, e útil, sem acrescentar nenhum valor a esta sociedade tão medíocre que já temos. E eu não quero isso para mim. Sonho com voos bem altos e tenho o direito a fazê-lo porque sempre tenho lutado por isso, através do estudo e contínuo investimento na minha formação e valorização profissional. Por isso recuso-me a aceitar que seja esta a minha vida para sempre.
Perdida nestas ideias revolucionárias e ansiando por mudança, levanto-me e vou à janela. Está tanto frio! Os vidros estão todos embaciados. Começo a fazer desenhos nos vidros como quando era criança e a minha mãe sempre a gritar, pára com isso que depois fica tudo sujo!
As pessoas correm para apanhar os transportes de volta a casa, numa azáfama de casacos, cachecóis, malas e sacos. Uma vendedora de castanhas esfrega as mãos uma na outra numa expressão de frio e desalento de quem não vendeu nada. As pessoas estão com pressa e também não há dinheiro para as castanhas. Isto está uma alta crise. Até as castanhas estão caras, uma dúzia dois euros, e ainda por cima fazem gases, algumas vêm com bichos, e o jornal suja as mãos. Coitada da vendedora!
Está um sem-abrigo à entrada do metro com um cobertor pelas costas, a pedir esmola. As pessoas passam por ele e ignoram-no, algumas com a pressa até tropeçam nele. Todos o vêm mas ninguém lhe dá uma moeda, ou sequer um sorriso ou uma palavra, e ele ali continua com o cobertor nas costas, gorro na cabeça e a barba banca já bem longa….Um cego desce as escadas do metro auxiliado por uma senhora idosa que o ajuda a atravessar a passadeira…Contemplo isto tudo como um espectador e começo-me a sentir mal. Mal comigo mesma.
Eu afinal estou-me a queixar do quê? Tenho um emprego, tenho uma casa quente onde dormir, tenho saúde, sou inteligente, tenho uma boa formação, sou jovem e bonita, do que é que me queixo? Sou injusta? Queria uma vida diferente, é certo, e lutarei por ela, mas já não é tanto e tão abençoado o que tenho? Certamente que é…Olho para estas pessoas anónimas e penso que vidas terão elas, que sonhos povoarão os seus pensamentos, que desejos secretos elas têm e se serão parecidos com os meus, se envolvem casas grandes cheias de crianças a rir, uma família reunida à lareira a contar histórias, cães e gatos, viagens, livros, bons vinhos, jantares e gargalhadas … Todas elas devem querer algo, desejar algo para as suas vidas, e em vez disso muitas têm a miséria, o desprezo da sociedade, a doença, a deficiência, a marginalização, a exclusão social.
E eu aqui a pensar que queria ganhar cinco mil euros por mês. Desço à realidade. Toca o telemóvel. É a minha mãe que quer que eu vá jantar lá a casa, porque fez carne assada recheada com castanhas. Pergunto-lhe estupidamente onde é que comprou as castanhas. Lamento em silêncio que ela me responda: no Pingo Doce, querida porquê? Esquece mãe, sou eu que estou a perder o juízo. Desculpa, mas fica para outro dia, quero ir para casa. Desligo o computador, dou a última trinca no donut e sorrio para a Susana que está a tirar cópias, com o ar mais feliz deste mundo. Penso que sou uma insatisfeita crónica. Vou-me embora para casa, porque amanhã é outro dia. Vou fazer o jantar, aquecer-me junto à lareira e acabar o meu livro de um só fôlego. Afinal sou feliz, só que ainda não o sei.

2 comentários:

  1. Abençoados seres descontentes por natureza!

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  2. É um dom essa sua capacidade de expressar no papel aquilo que lhe vai na alma.
    Não pense, por um milésimo de segundo que seja, em algum dia vir a desistir da escrita e não descure os seus sonhos, mesmo os mais ambiciosos.

    Um abraço de uma leitora atenta *

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