sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Polivalência Funcional


Dantes a vida das mulheres era bem mais fácil, embora não tivesse tanta dignidade e independência. Tudo tem vantagens e desvantagens e a emancipação da mulher não é excepção.
Antigamente, as mulheres viviam para tratar da casa e dos filhos. Viviam numa panóplia simplista de fraldas e panelas, cuidando das crias, alimentando-as, lavando-as, vigiando-lhes as febres e as dores dos primeiros dentes. Cozinhavam, tratavam da casa, faziam compotas, jardinagem e ponto cruz e eram felizes assim. No dia seguinte, acordavam de manhã e as rotinas eram exactamente iguais, mas as mulheres não se importavam e sentiam –se preenchidas dessa forma, mesmo que não tivessem ideais mais longínquos do que os de criar os filhos e vê-los crescer, e aperfeiçoar-se progressivamente nas tarefas domésticas.
Andavam sempre afogueadas com os tachos e com as pantufas do marido à lareira que chegava do trabalho e queria aquecer os pés. E eram umas escravas domésticas, que se fartavam de trabalhar mas que não ganhavam dinheiro, e se queriam comprar um vestido ou uns sapatos tinham de pedi-lo ao marido. Mas isto não era necessariamente mau. Porque se se tivesse a sorte de ter um bom marido, a vida era perfeita. Já que o marido entregaria todo o dinheiro à mulher para ela efectuar a gestão da casa, e ela faria o que bem entendesse com ele, sem lhe dar mais satisfações do que as estritamente necessárias. E efectuaria as compras indispensáveis para a casa, para os filhos e para ela , claro está. Ora digam-me lá, o que é que uma mulher precisa mais? Pensando bem, acho que não era assim tão mau quanto isso.
Agora se o marido fosse daqueles autoritários, arrogantes e prepotentes, que trata as mulheres como meras empregadas domésticas aí é que a coisa poderia ser feia. Isto porque ninguém gosta de trabalhar e não ser reconhecida, levar com maus modos, não ser respeitada nem admirada, e ainda ter de pedir dinheiro para ir ao cabeleireiro. Toda a gente, e sobretudo todas as mulheres gostam de ser reconhecidas, e as deste tempo não eram diferentes com certeza. Quando as coisas davam para o torto , as mulheres não podiam simplesmente mandar o marido passear e bater com a porta como fazem hoje. Tinham de aguentar em silêncio porque não tinham emprego nem meios de subsistência, e eram olhadas com desconfiança quando se separavam do cônjuge.
Mas tudo mudou. Agora as mulheres trabalham fora e dentro de casa e ainda trazem trabalho para casa. Levantam-se às seis ou sete da manhã, tomam banho, arranjam-se, dão banho aos filhos, vestem-nos e fazem o pequeno-almoço. Andam sempre a correr e stressadas. Maquilham-se nos semáforos e levam os filhos ao infantário. Chegam ao trabalho ofegantes como se tivessem acabado de correr a maratona , e é apenas neste momento em que se sentam à secretária, que experimentam algo mais parecido com o descanso. Trabalham freneticamente, mandam e -mails, atendem telefonemas, participam em reuniões, e durante tudo isto trocam sms com o marido perguntando -lhe o que deseja jantar, e falam com a mãe no telefone fixo para saber se ela está melhor da gripe.
À hora do almoço aproveitam para ir ao banco, aos correios, ao supermercado e buscar as camisas do marido à lavandaria. Almoçam uma sopa ou uma salada porque hoje em dia com a ditadura da moda e da magreza que as top models instituíram como lei para cumprir, sob pena de morte, uma gaja não se pode esticar muito nas gorduras nem nos hidratos de carbono mesmo que lhe apeteça comer este mundo e o outro.
Por vezes vão ao ginásio à hora de almoço para terem tempo de ir directas de casa para o trabalho, e passam a vida a gerir o tempo da forma mais eficiente possível , como se disso dependesse a sua sobrevivência, porque de facto depende.
Trabalham sem parar até chegar a hora de ir para casa. Correm novamente até ao infantário e abraçam os filhos, que gritam, contentes por rever a mãe como se já tivessem passado duas semanas. Chegam a casa numa azáfama de malas, sacos e filhos e fazem o jantar sozinhas, ou com a ajuda do marido se ele conseguiu sair a horas, dão a comida às crianças, dão –lhes banho, jantam, arrumam a cozinha, levam o cão à rua, e quando dão por elas mais um dia se passou.
Sentem diariamente a pressão de terem de ser perfeitas. De solucionarem todos os problemas, de estarem sempre bonitas, arranjadas, bem-dispostas, disponíveis, preocupadas, infalíveis. De lavar, passar, arrumar, cozinhar, tudo com um sorriso. De afagar os filhos e ajudá-los nos trabalhos de casa. De serem esposas, amantes, mães, executivas, donas-de-casa.
Quando é que as mulheres param? E ainda dizem que não há super -mulheres! Hoje em dia muitas mulheres são dotadas de poderes mágicos de abnegação, dedicação, força e resistência mais do que qualquer personagem invencível!
Quando é que deixamos de nos exigir progressivamente mais a nós próprias até entrar na espiral do desconforto e exaustão? Quando é que podemos ir ver a bola com os amigos, ir beber imperiais ao café da esquina sem ninguém nos perguntar porque é que deixámos a loiça por lavar ou a roupa por estender?
Porque é que as mulheres têm de saber fazer tudo e os homens têm de ajudar a fazer alguma coisa?
Sempre com algum esforço e com o argumento que são tarefas das mulheres? Que eu saiba, com a polivalência funcional, já não há tarefas das mulheres, pelo menos não agora nos tempos que correm. Isso era dantes em que as tarefas domésticas competiam às mulheres, mas as tarefas laborais competiam única e exclusivamente aos homens. Em vez disso, agora ganhamos o nosso dinheiro e podemos bater a porta quando queremos porque não precisamos de ninguém para nos sustentar, mas também trabalhamos dez vezes mais. Somos respeitadas e fazemos ouvir a nossa voz. Ganhamos o nosso próprio dinheiro, usamo-lo como queremos e não temos de prestar contas a ninguém. Fazemos acatar a nossa vontade e sentimo-nos úteis à sociedade e a quem nos rodeia. Acumulamos tarefas até à fronteira do cansaço, e desafiamos os nossos limites e uma coisa que se chama tempo , que é o recurso mais escasso na vida de uma mulher hoje em dia. Se o tempo se vendesse aí numa loja qualquer, eu seria decerto a sua maior consumidora, porque para mim o tempo nunca chega para as mil tarefas que tenho para cumprir, e precisava de um dia com cerca de cem horas para poder fazer tudo o que necessito. Eu e outras mulheres que vejo por aí, sempre a correr, sorridentes e perfumadas mesmo que às seis da manhã quando o despertador toca lhes tenha dado vontade de parar o mundo e esquecer tudo.
Chego à conclusão que prefiro a vida de hoje, mesmo com as chatices, mesmo com as resmunguices dos chefes, mesmo que faça as tarefas dos homens e das mulheres ao mesmo tempo e ainda use saltos agulha.
Tudo tem o seu preço, e este é o da polivalência funcional que escolhemos. E eu acho que, apesar de todas as contrariedades, valeu a pena.

Rita
Texto registado no IGAC

1 comentário:

  1. Ora aí está a super-mulher em todo o seu esplendor!
    Não fosse apenas um pequenino pormenor que parece escapar-lhe.
    Essas super-mulheres têm normalmente uma empregada em casa e um marido que faz um pouco mais do que o descrito.
    E absolutamente de parte essa de se alindar para o marido. Para as outras sim! Pra aquelas delambidas que têm a mania de que são o máximo e que vejam, que ela, se quiser, às bota para escanteio em dois tempos.
    Mas não referiu as outras. As que casam por interesse. Ou só conhece as de ontem e as de hoje?
    Essas que sabem perfeitamente oferecerem a si próprias o que lhes dá prazer. E se quase sempre é com o dinheiro do marido, raramente o reconhecimento recai sobre esse.
    Bom Domingo
    fantomas

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