quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Cinco Números, Duas Estrelas



Se te sentires insatisfeita, escreve, já dizia a minha professora de Português do ensino secundário. E ela tinha toda a razão. Isto porque a escrever podemos ser quem quisermos, desde um agente secreto, ao vilão, à mulher-fatal, mesmo que no fundo sejamos um patinho-feio com medo de sair da casca do ovo.
A escrever podemos voar alto, lá a roçar a estratosfera, sem medo de cair, sonhar e divagar, criar fantasias mais ou menos reais, mais ou menos exequíveis, e deixar que os pensamentos fluam e se materializem num papel ou num ecrã de um qualquer computador, onde passam a ser reais e palpáveis.
Há várias formas de sonhar, e a minha sempre será escrever.
A escrever ninguém sabe quem somos naquele momento, e podemos ter as virtudes e qualidades que sempre sonhámos, mas com as quais a vida, a natureza ou outro elemento metafísico qualquer não nos bafejaram. Podemos contar histórias, relatos, verdades, mentiras, e ninguém sabe muito bem do que estamos a falar, se se trata da nossa vida, se é tudo inventado, ou se são histórias que já presenciámos ou ouvimos no metro ou no comboio de manhã, a caminho do trabalho, entre um jornal, uma revista e a música no mp3. Podem tentar fazer analogias com a nossa própria história de vida, porque todo o escritor é sempre um pouco autobiográfico, mas ficará indefinidamente a dúvida a pairar no ar, se falamos de nós, de uma personagem, ou de outro alguém que conhecemos noutra vida que vivemos.
Escrever é mesmo assim, não é para quem quer, é apenas para quem sente e pode. É para quem está na fronteira do sono e começa a ser bombardeado com letras gigantescas que formam palavras, até a consciência despertar a começar a formar frases, ideias e textos completos em fracções de segundos. É para quem está no meio de uma tarefa chata e começa a sentir algo estranho, luminoso, que aquece o peito e dá vontade de começar a correr e passar tudo para o papel para que nada se perca. É a sensação de plenitude que se tem, mesmo que se saiba que nunca ninguém vai ler tais escritos. Escreve-se com alma e coração, quando não se escreve, sai sempre uma grande porcaria, pelo menos isto era o que dizia também a minha professora de Português, que vestia umas calças de ganga com uns lápis bordados a cor-de-rosa, e umas camisolas de malha com mangas de balão e chumaços, já mesmo nos anos 90. Ela vestia-se muito mal e completamente fora de moda, mas lá que sabia escrever, sabia. E também sabia ser boa professora, o que hoje em dia é muito raro. Foi a primeira pessoa que chorou com um texto que eu escrevi, sem ser a minha mãe, e por isso nunca a esqueci. Foi também quem sempre me motivou a escrever mais e melhor, por isso foi um estímulo muito importante.
Sempre que estiveres insatisfeita, escreve, dizia ela. A levar à letra este conselho, que aliás é bem verdadeiro, e que sigo quase instintivamente, sem saber porque o faço, mas sabendo apenas que escrever alivia a minha insatisfação crónica e me preenche de alguma forma, eu passaria os dias a escrever. Como se o buraco de areia que escavo em mim diariamente até me sentir oca, pudesse de repente ser preenchido por um monte de palavras, pensamentos, reflexões, exteriorizações que me fazem sentir cheia como se tivesse almoçado três pratos cheios de comida, sobremesa e café. É assim que me sinto quando escrevo. Cheia, realizada, plena, feliz. Até podem ser só banalidades, podem os meus pensamentos ser recorrentes, posso usar clichés e lugares-comuns, posso falar do que toda a gente já sabe e não acrescentar nada de novo, mas sinceramente, estou-me nas tintas. Não escrevo para os outros, mas simplesmente para mim. Posso parecer egocêntrica, mas para mim escrever é um acto de amor, o amor que tenho pela própria escrita. Amo escrever, por isso escrevo com amor. Escrevo para me preencher, se alguém se identificar com o que escrevo, melhor.
Todos nós gostávamos de ser, ter ou fazer algo que não conseguimos. Todos nós temos sonhos, desejos, aspirações por preencher e alcançar. Para mim, eles estão todos ao alcance dos meus dedos e do meu pensamento, porque enquanto escrevo sou quem quero ser e vivo a vida que sonho ter. Sofro, exulto de alegria, rio e choro com um simples momento de escrita. Transcendo o imediato e transporto-me para outra dimensão, onde componho a minha vida, e a vida dos outros, à minha maneira e como eu a vejo.
Porque cada um vê as coisas como quer, como entende, como é melhor, como lhe convém. Por isso, não há verdades absolutas e tudo depende da interpretação que se faça dos factos.
Mas voltando à insatisfação, eu penso que hoje em dia as pessoas são muito insatisfeitas. A sociedade actual está sempre à procura de algo mais, nunca está contente com nada, vivemos um tempo em que ainda não se tem uma coisa e já se está a pensar no que se quer a seguir.
Dantes, na classe média, as pessoas tinham menos formação, arranjavam trabalhos modestos, ou tinham boa formação académica e arranjavam bons empregos a ganhar bem e sair cedo. Tinham a casa que podiam ter, andavam de autocarro, iam passear a Cascais no fim-de-semana, ou a Azeitão comer as tortas do Cego e eram felizes assim. Tinham três e quatro filhos, e as roupas, carrinhos e demais material infantil passavam de uns para os outros. As irmãs mais velhas davam o berço dos filhos ao futuro sobrinho que ia nascer. Na escola, as crianças aprendiam o básico e não havia cá actividades extra-curriculares. Actividades extracurriculares significava jogar ao elástico, à bola, ao pião, ao berlinde e às escondidas, e comer caramelos e chupa-chupas.
Passeava-se de mão dada com os pais no supermercado e à noite liam-se histórias aos filhos. As férias eram passadas no Algarve com uma casa alugada à quinzena para sete ou oito pessoas, ou na terra natal em casa das tias, tios, primos, e avós e serviam para matar as saudades da família e promover o convívio.
Hoje em dia, isto está totalmente fora de moda, e parece daquelas série antigas que passam na RTP-Memória.
Hoje a classe média é licenciada, mestrada e até doutorada, e ou tem a sorte de ter um belo tacho a ganhar um bom ordenado numa empresa ou Ministério qualquer, ou está numa caixa de supermercado, e por vezes, ainda melhor, no fundo de desemprego. Uns moram em grandes lofts ou moradias com vãos envidraçados, acabamentos xpto, móveis design, com jacuzzi nas casas de banho, azulejos de um designer espanhol que ninguém sabe quem é, mas que custaram 120 euros o m2, jardim, piscina, porta blindada, vídeo porteiro, domótica e demais comodidades. Os outros moram num T2 cinzento, cheio de humidade no tecto, têm sacos de roupa fora da estação na arrecadação a cheirar a bafio, e sonham com a casa dos primeiros.
Esses andam de jipe BMW X5 ou num Mercedes desportivo enquanto os outros têm um Opel Corsa de quinze anos com mais emissões de CO2 que um navio de cruzeiro, passo o exagero, e sonham com o carro dos primeiros.
Os primeiros vão passar o fim-de-semana à Serra Nevada onde têm um chalé, os segundos continuam a ir a Cascais, ao Guincho e a Azeitão comer tortas, porque isto há que saber ser pobre e feliz, e um pobre com a boca doce, é sem dúvida mais feliz.
Os primeiros têm um filho que se chama Martim ou Francisco e vai para os Salesianos ou para o Colégio Militar. Frequentará a esgrima, equitação, o judo, karaté, natação, piano, inglês e francês mesmo só tendo três ou quatro anos, mas que interessa isso agora? É de pequenino que se torce o pepino, lá diz o ditado popular…Ele há-de ser gestor como o pai, ou médico como o avô, e um destes dois há-de-lhe arranjar um tacho para perpetuar as tradições da família de ganhar bem e sair cedo.
Os segundos terão dois filhos, a Rute e o Filipe, que frequentarão a escola pública e nunca poderão andar na ginástica, nem na natação, no karaté, no piano ou ballet, porque os pais ganham mil euros por mês que mal dão para pagar a renda do T2 bafiento, quanto mais para estes luxos. Hoje também já quase não há histórias, nem tempo para elas, apenas a Play Station.
Agora os filhos ainda crianças, mandam nos pais, cobram, berram, exigem, chantageiam desde a mais tenra idade.
Os filhos dos primeiros fazem birras no El Corte Inglês e pedem tudo o que vêm, e os pais comprarão só para não os ouvir gritar mais. Os filhos dos segundos também gritam e choram no supermercado, mas só das primeiras vezes, porque facilmente percebem que gritar não os vai levar a nada, porque quando não há dinheiro, não há mesmo, venha lá quem vier. E as olheiras da mãe, e o ar baço do pai, de barba por fazer e mãos nos bolsos, elucidam claramente que não há brinquedos para ninguém. Mas também eles, esses pequenos seres, sonham já com a vida dos filhos dos primeiros…
Os primeiros passam férias três ou quatro vezes por ano, vão para as Maldivas no Verão, e deixam o filho com os avós paternos e maternos, à vez, que é para não os cansar muito.
Os segundos não vão de férias, porque simplesmente não podem, e aproveitam o subsídio para amortizar mais umas prestações do T2 bafiento…
E é assim que a vida se molda e se estrutura, sem atender ao mérito, ao empenho, ao esforço, às qualidades pessoais de cada um. O tempo vai passando e a vida não dá grandes condições para mudar o estado de coisas instituído das pessoas que vivem vidas remediadas. Por isso, a classe média, sector pobre, sonha com o Euro Milhões, joga todas as semanas nem que seja apenas dois euros, que isto quando tem que sair, tem mesmo, e não é por se jogar mais que há-de sair, argumento típico de quem tem o dinheiro curto na carteira. E alimentarão os sonhos de uma enorme casa, de viagens, melhor escola para os filhos, mais filhos talvez, ajudar os pais, os amigos e os necessitados. E assim se vão preenchendo pouco a pouco, a si mesmos e aos buracos da insatisfação que teimam em alastrar pelos corpos, colando bolas de espuma nos bocadinhos vazios do peito que teimam em ruir devagarinho, com o passar dos anos e dos sonhos que ficam para trás. Assim vão sonhando a vida que queriam ter, e tapando as fendas da ilusão de uma melhor, que permitisse não andar sempre a fazer contas, a esticar o dinheiro, a esperar pelo reembolso do IRS e que o seguro do carro se atrase. Assim conseguem ir vivendo a existência mais colorida que gostariam de ter, guiando o carro que sempre sonharam, indo de férias para uma ilha deserta, tudo apenas até à sexta-feira seguinte, em que o prémio afinal não sai, mas bolas, desta foi quase, tive os números todos próximos, para a semana é que é, se Deus quiser. E em vez das tortas de Azeitão, perguntam-se a que saberá o champanhe e caviar que vêm nas revistas do jet-set os ricos a beber e a comer, e imaginam tudo isto ao alcance de cinco números e duas estrelas.
Mas para mim, estrelas são apenas as que vejo no céu quando a noite cai e a lua ilumina o mundo. Por isso mesmo, continuo a preferir escrever.

Rita
Texto registado no IGAC

2 comentários:

  1. Uma crítica social extremamente bem executada, perspicaz, mas terna e emocionante ao mesmo tempo.Novamente ressalto a sua argúcia e a forma como aborda problemas quotidianos que todos vivemos, e pensamentos que todos temos de uma forma inovadora e extremamente bonita. A realidade,dura e crua. Palavras para quê? Acho que precisávamos de alguém como a Rita no panorama literário português. Se ainda não pensou nisso, acho que deveria considerar a hipótese de publicar os seus textos.
    Os meus sinceros parabéns.

    ResponderEliminar
  2. Ritinha,

    Que prazer extremo ler o que escreves.

    Por momentos fizeste-me viajar no tempo... recuar e dar por mim de mãos dadas com o meu pai a passear nas ruas de Peniche, Sesimbra, Ericeira... ao domingo á procura de um restaurante com um bom peixinho para comer e acima de tudo apreciar, recuar até ás longas viagens no mês de Agosto á terra natal, que agora, com tanta evolução (ou nao!!) demoro apenas 2 horas (e pago o triplo em combustivel e até pago portagens por andar dentro do meu próprio País, mas... as obras têm de ser pagas e bem podemos andar uma vida nisto que teremos a factura nas mãos eternamente) onde se matavam as saudades de meses, da comida boa e típica, do pão amassado á mao e feito no forno a lenha, onde se viam os amigos "daqueles dias", do verde dos campos que vía montada num cavalo ou num burro e dos avós que nos deixavam fazer tudo, até mesmo ajudar a tratar dos animais e fazer patifarias :), dos jantares á noite no quintal com os "35º" que se sentem nas noites alentejanas, do bailarico á noite, dos prémios das rifas e de todos os vestidos (um por dia) cheios de folhos e laços e ganchinhos a condizer, que quanto mais pirosos... MELHOR!! As viagens até ao Algarve que chegavam a demorar 7 e 8 horas de Lisboa, mas que quando chegados ao destino nos sabiam tão bem... era a fuga á rotina, á vida real. Pelo menos durante 2 semanas (ou 1 dependia de como tinha corrido o ano até então, ou se haveria algum casamento onde dar uma prenda por 4 significava uma gasto elevado hihihi e resultante redução de custos) éramos "aqueles" que se levantavam tarde e chegavam cedo a casa, comiamos e bebiamos do melhor que havia, passeavamos e riamos juntos, e o mais importante, durante esses dias NUNCA ninguém adoecia, tinha dores de cabeça, ralhava ou implicava com alguma coisa. Durante esses dias não existiam problemas nem adversidades que não fossem facilmente ultrapassados.

    SIMMMM... eramos tãooooo felizes e nem dávamos conta :)

    Obrigado pela viagem, pelos sonhos e pela realidade relatada de uma forma tão particular como só tu sabes fazer.
    Anseio por mais textos.

    Susaninha :)

    ResponderEliminar