quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Ciência do Futebol



O futebol é uma ciência, e pode ser bastante interessante, dizias tu, tentando convencer-me.
Logo a mim, que sempre fui aclubística, e nunca me interessei por desportos. Na escola sempre fui um desastre a Educação Física, e pertencia aquele clã que inventa desculpas atrás de desculpas, sempre as mais esfarrapadas possíveis, para não ir para os campos jogar futebol, basquetebol, andebol e voleibol. Nunca tive jeito para nada disto, e era daqueles contributos que todos dispensavam nas equipas, porque marcava golos na própria baliza quando passava a bola para o guarda-redes, e não era nada bom. Então era sempre a última a ser escolhida, e mesmo assim as equipas digladiavam-se para não ficarem comigo, já que eu devia muito à perícia e ao jeito para o desporto. E depois ninguém me passava a bola, com medo que eu arruinasse todas as jogadas tácticas e andasse aos pontapés sem rumo. Por isso criei uma espécie de imunidade aos desportos de bola, e não me conseguem interessar, por mais que me esforce. Nunca tive clube, nunca torci por quaisquer equipas, e só há bem pouco tempo é que torço pela Selecção Nacional, mas aí com o fervor de um religioso que vai a Fátima pagar pelas promessas.
Por tudo isto, o futebol sempre me passou completamente ao lado, e nada mais representava para mim do que vinte e dois homens suados a correr atrás de uma bola, e a tentar marcar golo nas balizas adversárias. Um bocado à semelhança do que fazem no dia-a-dia, mas isso agora não interessa nada.
Mas quando tu entraste na minha vida, percebi que o futebol podia não ser só isso e conseguiste-me mostrar que eu estava a ter uma visão redutora das coisas. Desde logo, porque o jogo obedece a uma táctica, cada jogador tem uma posição, mas no entanto, não se resume a ela, e têm todos de jogar em conjunto, obedecendo a uma estratégia, mais ou menos coerente, que permita fintar os adversários e marcar golo na baliza deles.
Há também que estudar os adversários, dizias-me tu no sofá da sala, nas tardes chuvosas de Domingo, e eu enroscada em ti e tapados com uma manta, no calor dos corpos e das carícias.
E aí percebi que no futebol, tal como na vida, temos de estudar os nossos adversários, saber como se movem, o que pensam, e tentar antecipar as reacções deles, de forma a impedir que levem a sua avante e nos prejudiquem no jogo.
Mas isso, todos fazemos no nosso dia-a-dia. Andamos constantemente a analisar e a fazer juízos de valor sobre os outros. Quando percebemos que determinada pessoa não é de confiança, e logo é um potencial adversário, também adoptamos uma táctica. Seja a do desprezo, seja a de analisar essa pessoa, saber o que é que ela pretende na verdade, e o que vai fazer a seguir, para melhor nos podermos defender. Afinal, sobre este prisma, o futebol até pode ser interessante, reconheci.
Também me ensinaste o que era um canto, um livre, e um fora de jogo, e depois de me explicares, até consegui reconhecer quando os árbitros estão a ser uns sacanas.
Às vezes, quando anulavam certos golos do teu Benfica, juntava-me a ti no coro da indignação, e em uníssono insultávamos o árbitro, claro está que não havia fora de jogo nenhum, o golo era válido, pois com certeza. E eu, que nem nunca gostei de futebol, conseguia então entender porque é que este desporto move montanhas, galvaniza, emociona e faz as pessoas saírem do sério como se um golo marcado e a vitória do clube fossem um prémio da lotaria.
Explicaste-me que a táctica de jogo é importante para uma equipa ser vencedora, mas sobretudo o que conta é como a equipa consegue pôr em prática essa táctica e funcionar em campo como um todo, sem individualismos. E eu assenti, e depois de reflectir um pouco, conclui que também na vida isso se passa, já que as pessoas vivem centradas em si mesmas, no seu pequeno e egoísta mundo, sem reparar que o mundo real, o de lá de fora, não começa nem acaba na sua porta de casa. Existem biliões de pessoas com problemas tão ou mais graves do que os nossos, e temos de pensar no bem comum e em alcançar algo melhor e mais importante do que a mera satisfação pessoal.
E em todas estas coisas eu divagava, com a cabeça deitada no teu peito, olhando para o ecrã, e vendo a bola a saltitar na relva verde, sendo pontapeada uma e outra vez, e mais um remate à baliza que falhava, e depois a outra equipa retomava a posse da bola e tentava marcar e rematava, mas também não conseguia o golo. E tu indignado, como é possível tanta azelhice junta? Com a baliza ali desprotegida, nem assim conseguem marcar?!?
E em silêncio mais uma vez reflectia, que na vida também sucede exactamente o mesmo. Porque passamos o tempo todo a correr com o coração aos pulos, a suar, a sofrer e a lutar por algum objectivo e depois, quando estamos mesmo à beirinha de o alcançar, deitamos tudo a perder. Seja por falta de sorte, jeito ou outra variável qualquer, simplesmente, não conseguimos marcar golo e os sonhos caem por terra e sentimos que foi tudo em vão.
Mas tal como a equipa de futebol, também nos levantamos do chão e retomamos o jogo, novamente correndo, sofrendo e lutando até conseguir. E às vezes conseguimos mesmo.
Quando duas equipas empatam, mas daquele jogo há mesmo que sair um resultado, tem de se ir ao desempate por penaltis, o que é muito injusto, porque não se atende ao mérito das equipas, nem ao jogo que têm vindo a fazer até aqui. Porque se torna sempre bastante difícil para o guarda-redes defender um penalti.
E eu sei que é verdade, porque na escola também me punham sempre de guarda-redes, já que eu não jogava nada. Então se a defesa fosse boa, não se importavam de me pôr ali na baliza sabendo que haveria alguém que não deixaria a bola chegar até mim, para eu nem sequer ter de a defender. Por isso sei que é muito difícil defender estas jogadas, já que eu passava a vida a levar com boladas na barriga e na cabeça. E uma vez levei uma tão forte no nariz que até fiquei a sangrar, e decidi que aquilo não era para mim. Logo eu que gostava tanto de ballet, aeróbica e das aulas de dança que frequentava. Andar ali a levar com bolas no nariz só para manter as amizades é que não. Foi aí que passei a integrar o clã dos atestados e das dores de barriga. Assim, percebo perfeitamente que seja quase impossível para os guarda-redes defenderem aquelas bolas que parece que vêm a deitar labaredas, tal é a força com que são pontapeadas.
E tudo isto me fazia sorrir aninhada no teu peito, enquanto me ias dando lições sobre a ciência do futebol, que afinal é bem mais complexa do que o que parece.
E falavas de jogadores, de treinadores, das máfias do futebol, dos milhões e dos interesses envolvidos nas transferências de clubes, e obrigavas-me a ver o Dia Seguinte e o Domingo Desportivo, mesmo quando eu queria ver a novela ou um filme qualquer.
Depois explicaste-me também os vários tipos de competições que existem, o que é a Liga dos Campeões, quem participa, o que é a taça UEFA, quantos clubes participam, como são escolhidos, e montes de outras coisas que já não me lembro. E de cada vez que víamos um jogo, me perguntavas, em jeito de questionário de concurso, quais eram as competições e formas de selecção, e eu metia os pés pelas mãos e inventava montes de coisas e regras que te faziam rir e não sabias onde eu ia buscar aquelas ideias todas baralhadas.
E eu ria-me também e pedia para me explicares novamente, não porque me interessasse muito, mas apenas para te demonstrar que se eu quisesse, também podia perceber de futebol, embora nunca o tenha sabido jogar. E tu rias ainda mais, e lá começavas a interminável ladainha que me fazia sentir mole, sonolenta e a flutuar e ia enterrando a minha cabeça no teu peito e nas almofadas, na Liga dos Campeões e nas taças douradas passando de mão em mão.
Mas depois foste embora e eu esqueci tudo. Agora já nem sei o que é um canto, nem um fora de jogo, não torço por nada nem por ninguém e simplesmente desligo a televisão quando está a dar algum jogo. Não sei nada de equipas, jogadores, treinadores, ou competições. Para nós, o jogo acabou num empate, e eu até consegui descobrir porquê: é que no futebol, como na vida e no amor, é sempre necessária uma estratégia bem planeada, e eu, nunca fui muito boa nestas coisas.

Rita

Texto registado no IGAC

2 comentários:

  1. Gosto da forma como escreve,genuína e intensa . Apreciei particularmente a analogia entre o futebol e a vida. Muito bem conseguida. Continue assim.

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