sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A Casa do Coração


Moras ainda no meu peito. Nele construíste uma casa aparentemente sólida, resistente à chuva, ao vento, aos furacões e fenómenos sísmicos. Já te tentei expulsar de todas as maneiras e feitios: à pedrada, aos pontapés, aos gritos, com explicações racionais e plausíveis, mas tem sido tudo em vão. Porque tu continuas lá, impassível, de pedra e cal, e recusas-te a sair.
Tenho pensado em mil estratagemas para te pôr fora deste sítio ao qual não pertences, mas nada tem funcionado. Antes de conseguires construir a casa à minha revelia, ergui uma muralha forte e robusta, composta das pedras das desilusões que pesam uma tonelada cada uma, e consegui ladear todo o meu coração com ela. E ele ficou assim, fortificado, impenetrável e inexpugnável, pelo menos era o que eu pensava na altura. Mas um dia, sem saber como nem porquê, apercebi-me que tu, qual David Copperfield, tinhas transposto a muralha que eu erigi com tanto cuidado. Revoltei-me, fiquei furiosa, perguntei-te que direito tinhas tu de estar a invadir uma propriedade privada. Mas o coração não é uma propriedade privada, respondeste, e aliás, foste tu que me deixaste entrar.
Que ousadia! Mas decidi que não ias ser mais forte do que eu e do que a minha vontade. Por isso, durante meses reforcei a muralha, descobri pontos fracos, remendei os buraquinhos existentes nas pedras, mesmo que mínimos, fiz um belo isolamento à prova das decepções e do fracasso, que são piores que as infiltrações de humidade, e construi também um enorme fosso já do lado de dentro da muralha.
O fosso é muito fundo e tem águas lamacentas, opacas e frias, para dissuadir eventuais curiosos, que só queiram transpor a muralha e entrar na minha propriedade, apenas para ver o que lá existe dentro, mas sem querer construir qualquer casa sólida, nem investir em qualquer finalidade louvável.
O fosso tem crocodilos imaginários, simplesmente porque cá não consegui arranjar dos verdadeiros. Num país como o nosso é extremamente difícil arranjar um crocodilo, nem vos passa pela cabeça. Ainda tentei ir ao Jardim Zoológico ver o que é que se arranjava por lá, mas também fiquei um bocado desiludida porque os crocodilos que lá estão já não são apresentáveis e não metem medo a ninguém. São velhos e desdentados, parece que estão sempre a dormir e não têm energia senão para se arrastar de dentro para fora de água e comer.
Já nem há crocodilos como dantes, ou então só mesmo no National Geographic, daqueles que conseguem devorar um gnu e uma zebra em segundos, coitadinhos. Nunca gostei de ver estas cenas, e sempre me impressionaram muito, mas agora até reconheço o potencial dos crocodilos para afugentar criaturas indesejáveis.
Ainda pensei comprar daqueles crocodilos a fingir que são colchões para levar para a praia e têm umas pegas no dorso, incrustadas nas escamas, para a pessoa se agarrar. Mas conclui que não valia a pena. Desde logo porque a cor é extremamente artificial e não há crocodilo nenhum verde fluorescente, de olhos azuis e boca vermelha. Os crocodilos são todos verdes acinzentados e às vezes castanhos porque vivem cobertos de lama, e confundem-se com a paisagem, como os camaleões. Deve ser por isso, que uma vez no Senegal, eu me ia sentando em cima de um a pensar que era um banco de pedra, e só acordei com um grito a avisar-me de que aquilo era um crocodilo a sério.
Mas posta de parte a ideia de colocar crocodilos no fosso, arranjei uma dezena de pit-bulls e soltei-os na minha propriedade, só por precaução, pois para mim ninguém ia conseguir transpor aquela muralha, nem tão pouco conseguir nadar pelo fosso até à outra margem.
E assim andei uns tempos descansada, com a muralha reforçada, o fosso, e os pit bulls à solta com os dentes afiados.
Mas um destes dias, novamente me surpreendeste. Quando dei por mim, tinhas de um dia para o outro, construído uma casa no meu peito. Uma casa! Já não bastava estares lá, como ainda tiveste a desfaçatez de querer criar raízes e construíres sem pedir licença.
Em primeiro lugar, a casa é ilegal, porque tu não me pediste qualquer licença para construção, e que eu saiba a autoridade neste território ainda sou eu. Em segundo lugar, suspeito que a casa não cumpre certas normas do RGEU, pelo menos assim me parece, porque há sítios que não têm janelas, o que impede a luz, o sol e o ar de entrar. Mas para ti não deve fazer diferença, já que sempre quiseste viver na escuridão.
Em terceiro lugar, não te contentaste a fazer uma casa térrea, tiveste logo de construir uma casa com três pisos. Três pisos com aproveitamento da cobertura, com um jardim interior e pareceu-me até que tens uma pequena piscina atrás da casa. Mas isso ainda vou descobrir. Sempre tiveste a mania das grandezas. Pelos vistos planeias ficar muito tempo, para estares a investir desta maneira.

Mas estás bem enganado, porque eu vou demolir esta porcaria toda com uma retroescavadora, num forte acesso de raiva, e depois vou plantar cactos em todo o lado, que é para não deixar ninguém construir mais nada, e quem tiver a lata de tentar, vai espetar espinhos no corpo inteiro e sangrar.
Suspeito que não vai ser muito difícil demolir a casa porque na verdade, os alicerces estão podres. E quando a base de tudo está danificada, não há como sustentar uma construção, venha lá quem vier. Aliás era uma questão de tempo, ou de uma intempérie mais forte, até a casa começar a dar de si, e se espatifar toda no chão, num monte de pó e escombros, enchendo o meu peito de entulho desnecessário.
Tu argumentas que a casa foi bem construída, os alicerces estão em perfeito estado e que esta morada vai ser para a vida toda, porque foi o lugar que escolheste e não vais sair dele nunca.
Mas nem que eu tenha de chamar o primeiro-ministro para implodir isto tudo, garanto-te que não ficas aqui. Se ele conseguiu implodir aquelas torres gigantescas lá em Tróia, também há-de conseguir implodir a tua mísera casa com alicerces frágeis. Aliás, isso vai ser uma brincadeira de crianças.
Porque mais uma vez só pensas em ti. Eu também quero construir o meu palácio, algures aí num coração anónimo. Esse coração tem de ser especial, tem de me dizer alguma coisa. Tenho de me sentir lá bem e confortável, amada, desejada e protegida, por isso tem sido difícil encontrar a minha morada para começar a erigir o meu palácio. Ultimamente tenho andado a morar em tendas nómadas que improviso nos peitos alheios, até concluir que aquele lugar não é para mim. Optei por esta solução porque a tenda é muito mais fácil de desmanchar quando as coisas não correm bem. Desenterram-se as estacas, recolhe-se o pano e põe-se a trouxa às costas.
Mas estou farta de morar em tendas e quero construir o meu palácio. Só que primeiro tenho de limpar o meu coração de uma ponta à outra, por isso preciso que saias dele o quanto antes e leves a tua casa contigo. Enquanto não saíres eu vou continuar a levar uma vida nómada, sem raízes, dormindo em tendas e carregando todo esse peso às costas.
Vais ter de sair, dê lá por onde der, nem que eu tenha de intentar uma acção de despejo e recorrer à força, só mesmo para te meter medo.
Mas duvido que isso te assuste, porque tu até nunca tiveste medo de leis e tribunais.
Rita
Texto registado no IGAC

5 comentários:

  1. Mais uma vez, um texto lindíssimo. A luta e a dor de alguém que vive um amor sofrido, doente, mas que apesar de tudo continua a ocupar espaço no coração, porque este não obedece, e não esquece...
    Parabéns, Rita.

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  2. Lindo, o teu blog, os teus textos. Tens um modo de escrever cativante e intenso. Ao nível dos melhores escritores.
    Citando uma das minhas escritoras favoritas: "Não escolhemos quem amamos, nem escolhemos quando deixamos de amar" - Margarida Rebelo Pinto

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  3. Parabens!
    Agradavel surpresa!
    Bom trabalho!

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